Logo que o balanço financeiro do Vasco foi publicado, no fim de abril, parte da torcida desconfiou nas redes sociais dos números apresentados, e a oposição se mexeu nos bastidores para desacreditá-los. Como é que pode um clube com salários atrasados terminar o ano com R$ 65 milhões em superavit? Tem de haver algo errado!
Para um clube que vinha da administração de Eurico Miranda, pouco transparente e confiável, é natural que a torcida fique ressabiada com boas notícias. A guerra política nos bastidores desde a eleição de Alexandre Campello, que desfez uma aliança com Julio Brant para se eleger em seu lugar, também contribui para elevar a desconfiança.
Por toda a desconfiança, antes de falar dos números, é preciso dar algum parecer técnico sobre a confiabilidade deles – e este parecer não é feito pela reportagem, e sim pela BDO, auditoria externa e independente contratada pelo clube. No balanço auditado pela empresa no ano passado, referente às contas de 2017, o parecer foi o mais grave possível. Uma vez que a auditoria não conseguiu evidências para uma enorme quantidade de dados informados pelo clube, ela abdicou de atestar a veracidade do balanço. Não dava para acreditar no Vasco.
O relatório da BDO melhorou consideravelmente neste ano, em referência a 2018. A auditoria apresentou ressalvas em relação aos dados. Ela não pôde validar valores que a contabilidade vascaína afirma existir em "depósitos judiciais", bem como não confirmou números referentes a "férias a pagar" e "rescisões". Ainda há pontos mal esclarecidos, portanto. Mas eles nem se comparam aos que tinham sido apontados no ano anterior. Hoje o vascaíno pode ter pela primeira vez a noção de que os números em seu balanço estão próximos da realidade.
A chegada da nova auditoria também ajuda a entender, agora entrando de vez nos números, por que o endividamento do Vasco disparou no ano de 2017 em relação ao que vinha sendo informado. Conforme a diretoria de Campello levantou tapetes e abriu armários, encontrou e contabilizou dívidas que não tinham sido reconhecidas em balanços anteriores.
Em vez de citar uma sequência de números descontextualizados, ficará mais fácil entender a história que o balanço nos conta se passarmos pelos principais fatos ocorridos em 2018 – na área administrativa, claro. O superavit de R$ 65 milhões e o faturamento em alta, superior a R$ 240 milhões, são apenas algumas cifras de uma realidade que começou a melhorar no ano passado, mas ainda está distante de ser solucionada.
Logo que tomou posse, Campello encontrou um clube sem dinheiro em caixa, salários atrasados e dívidas a pagar. A solução de curtíssimo prazo foi um empréstimo arranjado pelo presidente com Carlos Leite, empresário de boa parte do elenco vascaíno. Sem juros, com o crédito deu para começar a temporada. Quando o Vasco vendeu Paulinho para o Bayer Leverkusen, usou parte do dinheiro arrecadado com a venda para quitar o empréstimo inicial e bancar despesas correntes. Foi a quantia justa para fechar o primeiro semestre e nada além.
Essa dependência da venda de jogadores para pagar os boletos existe porque, embora sejam a sua maior fonte de receita, os direitos de transmissão foram antecipados pela administração anterior. Campello pegou em janeiro de 2018 um clube que já tinha recebido – e gastado – mais de 92% dos pagamentos previstos pelos contratos com a Globo. Este, aliás, é um grave problema para o caixa que também passa por 2019 (63% adiantados), 2020 (32%) e 2021 (18%). Eurico tinha gastado o dinheiro que a televisão pagaria mais de quatro anos após sua gestão.
O desenrolar da história mostra por que o balanço aponta para uma coisa, e a realidade entrega outra. Contabilmente, as receitas com direitos de transmissão são reconhecidas por inteiro, mas na prática o dinheiro nem passa pelo caixa cruzmaltino. Ele vai direto para as mãos das instituições financeiras que tinham emprestado dinheiro a Eurico com o contrato de tevê como garantia. E isso também ajuda a entender por que o endividamento foi reduzido no ano passado. Chegaremos lá.
Ainda em relação à arrecadação, dois movimentos aconteceram. O departamento de marketing e comercial gerou menos dinheiro do que na temporada anterior. Apesar de aumentado a quantidade de marcas expostas na camisa e de contratos assinados, o valor arrecadado com patrocínios e licenciamentos caiu. Por outro lado, o aumento das receitas com o quadro social elevou a participação da torcida e dos conselheiros vascaínos sobre o faturamento. Grosso modo, a torcida compensou o que a área comercial deixou de arrecadar no ano como um todo.
À medida que a verba da televisão era direcionada para pagar empréstimos bancários, a diretoria vascaína aproveitou para reduzir o endividamento e também mudar o perfil dele. Empréstimos com os bancos Bradesco e BCV, que tinham taxas de juros acima de 2% ao mês, foram quitados. Outros foram renegociados para que gerassem menos perdas para o clube. Empréstimos feitos com o BMG foram renovados com taxa na casa do 1,5% ao mês. A redução dos juros é importante para que o Vasco perca menos dinheiro para banco e gaste com futebol.
A dívida bancária foi reduzida em cerca de R$ 30 milhões no ano passado, e só não pôde cair ainda mais em função das dificuldades financeiras do cotidiano. Lembra que o dinheiro da venda de Paulinho tinha dado para fechar o primeiro semestre? Pois foi apenas até ali. Sem fazer outras grandes negociações, a diretoria teve de pedir ao Conselho Deliberativo vascaíno em agosto a permissão para tomar um empréstimo de R$ 38 milhões. Se o dinheiro não entrasse, não haveria suficiente para pagar os salários dos jogadores já em setembro.
É aí que a política vascaína mostra a sua face mais complicada. Como Campello não conseguiu unir grupos políticos nos bastidores, momentos como o da tomada do empréstimo são tomados pelos interesses pessoais das figuras envolvidas. O Conselho protelou a autorização até meados de setembro, de modo que a primeira parte do empréstimo, de R$ 14 milhões, só saiu no fim de outubro. Outra parte de quase R$ 6 milhões foi captada já no fim de novembro. O restante travou. E o Vasco passou pela virada do ano com contas a pagar.
Enquanto lidava com as dificuldades para conseguir crédito, a direção mexeu nos custos para enquadrá-los dentro das receitas. A folha salarial do futebol profissional foi mantida praticamente no mesmo patamar do ano anterior, gastos administrativos foram consideravelmente reduzidos.
Esta é a história do Vasco que fechou 2018 com R$ 65 milhões em superavit. O dinheiro não ficou disponível nas contas cruzmaltinas. Nunca esteve. Superavit é a diferença entre receitas e despesas ao considerar um determinado período. Como o Vasco arrecadou mais do que gastou, terminou a temporada com lucro. E onde foi parar todo o lucro? Nos bancos que Eurico havia usado para antecipar, por meio de empréstimos, a verba da televisão. A realidade segue muito difícil.
Outros movimentos facilitaram a redução do endividamento. O Vasco conseguiu a autorização da Justiça para que pudesse usar depósitos judiciais, cerca de R$ 36 milhões, para quitar dívidas tributárias que estão parceladas pelo Profut. O dinheiro estava travado por discussões judiciais e pôde ser destravado para aliviar um pouco a barra com o governo. Se não quiser perder os benefícios da renegociação de sua maior dívida, precisa manter suas obrigações com o Profut em dia.
Receitas aumentaram por causa da venda do Paulinho, houve economia nos custos operacionais, dívidas foram reduzidas ou renegociadas para aliviar a situação. Outros indicadores apontam para a mesma direção. O Vasco também conseguiu no ano passado diminuir as suas dívidas de curto prazo, que precisarão ser pagas no decorrer de 2019.
É verdade que no futebol o clube foi massacrado na Libertadores e quase rebaixado no Campeonato Brasileiro. O mau desempenho esportivo aponta para problemas no departamento de futebol, especialmente porque o Vasco possui uma folha e um elenco mais qualificados do que adversários diretos de menor porte. Também é verdade que administrativa e financeiramente o ano de 2018 foi positivo para o Vasco. É contra-intuitivo, mas é possível que aconteça. Aconteceu.
O grande problema vascaíno é que, por causa da enorme quantidade de dívidas acumuladas ao longo das décadas, o processo de recuperação passa por tudo dar certo o tempo inteiro por muitos anos. Mais jogadores precisarão ser vendidos por quantias relevantes, outras receitas terão de ser aumentadas, custos precisarão ser mantidos sob controle, tudo para que as dívidas sejam gradualmente pagas.
Alexandre Campello não tem o apoio massivo da torcida, nem possui base política forte para governar com o absolutismo dos tempos de Eurico Miranda. Também não pode descuidar do futebol nem por um instante. Se for rebaixado para a Série B pela quarta vez, o contrato dos direitos de transmissão da primeira divisão não valerá, e a recuperação iniciada na temporada passada será interrompida. Campello começou um processo que não acabará com ele. Caberá à política vascaína dar continuidade. A boa notícia é que a recuperação começou.