Neste domingo (7), o capítulo mais importante da história do futebol brasileiro completa 100 anos. Em 7 de abril de 1924, o então presidente do Vasco da Gama, José Augusto Prestes, se voltou contra o racismo da Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), que organizava o Campeonato Carioca na época, e redigiu um documento afirmando que preferia se desfiliar da associação, e consequentemente do torneio - na época, era o principal do país - a ter de excluir seus atletas negros e de camadas populares, como dizia o regulamento. Essa ação ficou eternizada como a Resposta Histórica.
A luta vascaína contra o preconceito vinha desde os tempos do Remo. Em 1907, o Vasco já havia lutado contra a discriminação social. Multicampeão na modalidade utilizando atletas que conciliavam a vida trabalhando como zeladores e atendentes de comércio, o Cruzmaltino enfrentou um regulamento que queria vetar que atletas de profissões consideradas 'menos dignas' pudessem competir.
Quase uma década depois, o CRVG começou a se aventurar no futebol, que começava a crescer na Cidade Maravilhosa. O início foi desastroso, mas foi jogando nos subúrbios que o Vasco encontrou o sucesso.
Na época, o futebol era considerado um esporte de elite e só poderia ser jogado por membros dessa classe. Nas equipes de menor expressão, o Vasco encontrou atletas promissores e de origem humilde, que ganharam a oportunidade de mostrar seu talento nos campos com a Cruz de Malta no peito. Na época, a maior parte da população carioca era analfabeta, o que era um dos empecilhos para jogar futebol profissionalmente. Além disso, a regra do Remo foi trazida para o mundo da bola, impedindo que os atletas tivessem outras profissões.
Para resolver o caso, o Vasco começou um processo de alfabetização básica dos atletas e juntou valores dos associados para pagar salários aos atletas a partir dos anos 20. Esses gestos são considerados por muitos como o início da profissionalização do esporte no Brasil.
Também na década de 1920, o Vasco formou o elenco histórico conhecido como 'Os Camisas Negras'. Liderado pelo goleiro Nelson da Conceição, o primeiro goleiro negro da Seleção Brasileira, e pelo astro Russinho, o Cruzmaltino conquistou o Campeonato Carioca de 1923. Com um elenco cheio de atletas negros e de camadas populares, a vitória ante os times da Zona Sul irritou parte da imprensa, que redigia matérias de cunho racista contra os atletas vascaínos; e os times afiliados à Liga Metropolitana de Desportos Terrestres: América, Bangu, Botafogo, Flamengo e Fluminense, que se desfiliaram da Liga e formaram, em 1924, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos, a infame AMEA.
Sob a figura de Arnaldo Guinle, então presidente do Fluminense, a AMEA - que foi presidida por ele em toda sua existência - convidou o Vasco para participar como membro-fundador. Porém, fazia exigências de extremo mau-gosto, carregadas de preconceito. Se o Gigante da Colina quisesse integrar a AMEA e disputar o Campeonato Carioca, teria de excluir de seu elenco, o então campeão carioca, 12 atletas. Não por acaso, os jogadores eram em grande maioria negros ou oriundos de camadas populares da sociedade.
Então, num gesto revolucionário, José Augusto Prestes escreveu, assinou e enviou Ofício n.º 261 ao presidente da AMEA, Arnaldo Guinle, ressaltando que não era aceitável julgar o clube por sua sede simples ou pela condição modesta de grande parte do elenco. Em certo trecho do documento, o presidente vascaíno protestou contra o pedido de exclusão de seus 12 atletas, que foram julgados por um comitê sem direito a defesa.
Sendo assim, Prestes concluiu dizendo que não abriria mão de seus atletas e que o Vasco não participaria da AMEA diante desse ato "pouco digno" para os jovens que defendiam as cores do clube com tanta honra.
"São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira, e o acto publico que os pode macular, nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias", diz Prestes no trecho mais marcante do Ofício.
Nascia ali a 'Resposta Histórica'. Com esse enfrentamento ao regulamento racista de uma associação composta pela elite do Rio de Janeiro, o Vasco abriu as portas para que atletas negros e de camadas populares da sociedade pudessem jogar futebol, além de aproximar o esporte do povo da então capital do país.
Sem a aprovação na AMEA, o Vasco disputou o Carioca da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres que já não contava com tanto prestígio por não trazer os times mais populares da cidade. O Vasco sobrou no torneio e foi campeão novamente em 1924. Os jogos realizados pelos craques do Vasco da Gama encantavam parte da imprensa e a torcida popular, que se via nos atletas em campo.
Com a popularidade crescendo exponencialmente, o Vasco acabou sendo convidado para integrar a AMEA em 1925, que terminaria com o Gigante da Colina na segunda colocação.
Neste domingo (7), a luta antirracista do Vasco completa um século, mas parece estar longe de acabar. Ao enfrentar novamente o preconceito do Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que manteve o estádio de São Januário fechado por mais de três meses em 2023, o Vasco teve de lidar com as mais absurdas declarações a respeito não apenas do estádio, mas da comunidade Barreira do Vasco, onde está localizado o Caldeirão Histórico.
Após a briga em Vasco x Goiás, em jogo válido pelo Campeonato Brasileiro, em junho de 2023, o juiz de plantão do Juizado Especial do Torcedor e Grandes Eventos, Marcello Rubioli, encaminhou o parecer ao TJ-RJ solicitando a apuração do Ministério Público sobre os fatos.
No documento, Rubioli usou de termos carregados de preconceito, que causaram revolta nos moradores da Barreira e na diretoria do Vasco da Gama.
"Para contextualizar a total falta de condições de operação do local, partindo da área externa à interna, vê-se que todo o complexo é cercado pela comunidade da Barreira do Vasco, de onde houve comumente estampidos de disparos de armas de fogo oriundos do tráfico de drogas lá instalado o que gera clima de insegurança para chegar e sair do estádio. São ruas estreitas, sem área de escape, que sempre ficam lotadas de torcedores se embriagando antes de entrar no estádio", disse o juiz no parecer.
Foram mais de três meses com o estádio sem receber público, enquanto times como Santos, Coritiba e Cruzeiro, que também tiveram casos de confusão nas arquibancadas e, em alguns casos, até mesmo de briga campal, não passaram nem perto da punição recebida pelo Vasco. Ainda assim, com a volta da torcida, a chegada de Ramón Diáz e de reforços como Payet, Paulinho e Medel, o Cruzmaltino deu a volta por cima e conseguiu se salvar do rebaixamento em um Campeonato Brasileiro marcado por essa gritante falta de isonomia.
Além do racismo, em 2021, o Vasco assumiu o compromisso de lutar contra a homofobia. Em um manifesto sem precedentes, a instituição definiu o preconceito de gênero como inaceitável e se compromissou a combater esse preconceito por meio de ações. Desde então, o clube se uniu com líderes de torcidas organizadas para acabar com cânticos homofóbicos nas arquibancadas. Além disso, a instituição incluiu aulas e palestras de conscientização sobre questões de gênero e classe social no Colégio Vasco da Gama e para os atletas tanto da categoria de base quanto do elenco profissional.
Um compromisso que foi assumido há um século seguiu moldando a história vascaína e do futebol brasileiro, que passou a contar com nomes como Pelé, Garrincha, Romário, Jairzinho, Ronaldinho e muitos outros, que jamais teriam chance de praticar o esporte se não fosse esse passo inicial tomado pelo Vasco ao redigir um dos mais belos capítulos da história do esporte bretão com sua Resposta Histórica.