Lisca passou longe de ser doido em sua estreia pelo Vasco. Nos 4 a 1 sobre o Guarani, neste sábado, em São Januário, mostrou-se inquieto sim em relação à movimentação dentro de sua área. Andava de um lado para o outro, levantava os braços para argumentar com a arbitragem e olhava para o relógio constantemente. Porém foi especialmente sereno. Evitou esgoelar-se, situação que se repetia em duelos repletos de drama no fim do trabalho de Marcelo Cabo, que dirigia a equipe com a corda no pescoço há algum tempo. E foi além: soube pedir calma ao time em momentos cruciais do jogo.
Nos minutos finais do duelo e no pós-jogo, sim, soltou-se como um maluco beleza. No gol de Léo Jabá, o quarto da equipe, socou o ar três vezes antes de disparar um efusivo "p...!". Com um largo sorriso no rosto, vibrava com os braços e os pés enquanto esperava o abraço do camisa 7. Quando se encontraram, o envolveu fortemente e celebrou:
- Tá aí a tua perna. Tá novinha, tá inteiraça!
Vitória começa na dinâmica de sexta, e confiança aparece aos poucos
Em seu primeiro dia de Vasco, Lisca não teve muito tempo para trabalhar o futebol e concentrou-se em reerguer o lado psicológico do elenco. Organizou uma dinâmica em que convidou os jogadores a contarem suas respectivas histórias de vida. E a de Léo Jabá, protagonista absoluto da goleada sobre o Bugre com participação em todos os gols, foi a que mais o impressionou. O papo em grupo foi bastante positivo, e os atletas saíram empolgados com o que viram.
- O Léo talvez seja o menino que mais se expressou ao contar a história de vida. Teve um problema muito sério, uma bactéria no joelho quando estava na Grécia. Foi desenganado pelos médicos, que disseram que provavelmente ele nunca mais jogaria futebol. Ele só rezava para poder pelo menos caminhar de novo. Acho que ele está caminhando bem porque correu bastante (risos). Ele contou essa história, desabafou, e a maioria do grupo não conhecia. A comemoração com ele foi em torno disso. Falei: "Está aí a tua perna. Tá novinha, tá inteiraça".
A confiança que faltava a um time que acumulava jogos nervosos e vitórias que mais davam sensação de alívio do que satisfação veio com um gol rápido, marcado em jogada protagonizada pelo dois melhores vascaínos em campo - Jabá e Bruno Gomes - e finalizada por Marquinhos Gabriel.
A calma vinha de Lisca. Apesar de o Guarani ter começado o jogo dentro do campo do Vasco, inclusive com um chute a gol dado antes da primeira volta do relógio, o treinador não fez jus à fama de doido. Não dava um pio e parecia tranquilo. Sua primeira manifestação mais expressiva se deu aos cinco minutos, quando uma falta marcada pelo quarto árbitro o irritou. A bronca se deu por ela ter sido assinalada após muita reclamação do treinador Daniel Paulista e do banco do Guarani, que tentavam apitar o jogo desde o início.
Lisca não enlouqueceu no primeiro gol e tratou de curtir o voo de Marquinhos em direção ao banco vascaíno. Logo depois, chamou Jabá, fundamental na jogada, para tratar de posicionamento. Com a vantagem no placar, porém com o Guarani chegando constantemente com Régis e parando em ótimas defesas de Vanderlei, o treinador começou a andar de um lado para o outro em alguns momentos, mas vale insistir: nem por isso perdia a calma.
A serenidade permitiu até a Lisca sentar no banco por uns três minutos. De doido em sua área, aliás, ele não tinha nada. Era ponderado nas reclamações e as fazia sempre levantando os dois braços ou com mãos na cintura, seja para pedir faltas ou para dizer que o Vasco não havia cometido.
Suspiro, cumprimentos e tapinha na mão de Jabá no gol de Cano
Após Cano converter o pênalti sofrido por Jabá, Lisca suspirou e distribuiu sorrisos para Márcio Hahn, seu auxiliar, o preparador Daniel Félix e o jovem Arthur Sales. Para completar a comemoração, deu um tapa na mão de Léo Jabá, jogador que sofreu o pênalti e fez ótima triangulação com Galarza e Zeca antes de ser derrubado.
Jabá foi de longe o comandado com quem mais dialogou na primeira etapa. O fato de ter ocupado o lado onde ficam os bancos facilitou isso também.
A primeira explosão de Lisca
Lisca soltou a voz pela primeira vez no primeiro tempo aos 34 minutos, após o Guarani reclamar - e muito - de uma jogada violenta do Vasco na intermediária. Uma das pessoas que estavam no banco acusou o árbitro Denis da Silva Ribeiro Serafim de estar mal-intencionado. O treinador vascaíno não aguentou e gritou:
- Aí não! Estão falando que ele está mal-intencionado! - gritou, cobrando uma punição.
O primeiro tempo terminou como o mais otimista dos vascaínos jamais imaginaria: 2 a 0 no placar, e o time sereno. Começou mal, e o próprio treinador admitiu. Estava acuado, vendo o Guarani rodar bola e finalizar como queria, mas em nenhum momento houve desespero. Contou com um Vanderlei inspirado, e a tranquilidade fez o Vasco aguentar a pressão e, como dizem os modernos, saber sofrer numa etapa em que foi inferior no número de finalizações (4 a 12) e na posse de bola (39%).
Lisca atua junto ao bandeira e acalma ânimos de Pec em confusão com Bruno Gomes
Na volta do intervalo, a primeira providência de Lisca foi zerar o relógio, com ajuda do auxiliar Márcio Hahn. Apito dado, e o técnico manteve sua postura de incentivar o time, mas sem qualquer tipo de exagero. O Vasco cresceu e colocou o Guarani no bolso.
Ao conseguir equilibrar a posse de bola e a se soltar no jogo, o Vasco enervou o Guarani, que já não tinha a mesma penetração. E, aos 14 minutos, um lance marcou a redenção de uma das joias vascaínas. Marcado por duas expulsões consecutivas nos primeiros tempos das derrotas para Cruzeiro e Guarani, Bruno Gomes sofreu falta na linha lateral do campo ao proteger a bola.
Seu marcador, Rodrigo Andrade, irritou-se com a jogada e chutou a bola contra a cabeça de Bruno. O antes irritadiço vascaíno não reagiu e nem foi notado na discussão. Apenas ficou no chão. Gabriel Pec, bem menos explosivo, tomou as dores do amigo e peitou Andrade. Foi a hora de Lisca atuar e quase entrar em campo.
Primeiramente o treinador se dirigiu a Régis, um dos líderes do Guarani e jogador que deixou o gramado no primeiro tempo batendo boca com Leandro Castan. Depois tirou Pec do bolo, pediu calma ao 11 vascaíno e também puxou Galarza para uma conversa. Mais uma vez Lisca mostrava preocupação com a questão mental de um time que até pouco se mostrava extremamente pilhado.
Lisca vai cobrar o bandeira
O gol da tranquilidade, da certeza da vitória, veio acompanhado de uma incerteza. Jabá cruzou, e Bruno Silva fez contra. O auxiliar Esdras Mariano de Lima Albuquerque levantou a bandeira, e Lisca saiu de sua área em disparada na direção do bandeira. Apesar do pique e de buzinar na orelha de Esdras, o árbitro Denis da Silva Ribeiro Serafim assumiu a responsabilidade e acertadamente - segundo a Central do Apito - validou o gol.
Bruno Gomes não recebe a bola, mas recebe elogios
Curioso é que o gol saiu de uma desobediência tática de Léo Jabá. Antes do cruzamento, Lisca se esticou todo e gritou: "Bruno!". Queria que Jabá passasse a Bruno Gomes, que jogava muito bem àquela altura e estava livre para receber. Não recebeu a bola - que bom pra o Vasco -, mas recebeu muitos elogios do treinador após o apito final.
- O Bruno é um menino que conheço há muito tempo porque acompanhei um Brasileiro Sub-20 no Rio Grande do Sul. E o Bruno e o Caio (Lopes), que ainda não jogou, fizeram a melhor dupla de volantes do campeonato. Tentei levar o Bruno e o Caio para o Ceará, tentei, mas não consegui. O Vasco não liberou. Isso foi em 2018. Gosto muito porque tem técnica, tem força, tem personalidade e é competitivo.
- Quando se é novo, a gente tem que aprender as coisas. E o Bruno aprendeu. Da pior maneira possível, que é sendo expulso e sendo contestado, mas eu conversei bastante com ele. E o que passou, passou. Quando chega um novo treinador, a conta é zerada, e eu falei isso para ele. E a resposta dele foi muito positiva de controle. Ontem fizemos a dinâmica, e ele falou bastante - elogiou Lisca.
No final do jogo, Lisca ainda mostrou calma fazendo correções pontuais. Falou bastante com Juninho, um dos alvos preferidos de Vanderlei e Leandro Castan, os dois jogadores que mais falaram em campo. Aliás, se o gaúcho evitou os gritos, o goleiro e o capitão pouparam suas gargantas. Mas é bom destacar: em nenhum momento o fizeram em tom de desespero, mas sim no sentido de manter a concentração em alta até o fim.
Lisca mesmo pediu calma nos momentos finais, principalmente após o gol sofrido em bola parada. Nada que preocupasse um time que mudou o panorama do duelo. Terminou mandando no jogo, com 11 finalizações contra apenas cinco do Guarani e com chances para ampliar o placar.
"Gran finale" com Jabá e música na coletiva
A comemoração com Jabá, de tão marcante, foi narrada no topo da matéria. Não poderia ficar em outro lugar do texto. Mas o "momento Lisca Doido" foi reservado para a entrevista coletiva. Logo na primeira pergunta, em que foi questionado sobre "que combustível" levou ao vestiário vascaíno para os jogadores conseguirem a reação, sacou o celular do bolso e começou a digitar.
- Pode ser, eu vou te mostrar aqui uma coisa - respondeu Lisca ao repórter e em seguida executou em seu celular a versão vascaína de "Ana Júlia", uma das músicas mais cantadas pela torcida vascaína (veja no vídeo abaixo):
Assista!
Se todo vascaíno tem amor infinito, ele está pronto para cantar de coração o nome de Lisca. O primeiro encontro entre o treinador e a Cruz de Malta em campo ainda não teve a presença dos torcedores, mas deu impressão de que, na alegria e na dor, o sentimento entre o gaúcho de 48 anos e o Vasco da Gama não vai parar tão cedo.