Em dois meses, três clubes grandes, Vasco, Botafogo e Cruzeiro, fecharam acordos com investidores para vendas de suas SAFs (Sociedades Anônimas do Futebol). As negociações ainda dependem de sua conclusão definitiva, especialmente no clube cruzmaltino, em que é preciso votação dos sócios. As transações geraram uma discussão sobre os preços dos clubes: pagou-se pouco ou muito por eles? Quanto valem os tradicionais times brasileiros?
Para responder essas perguntas, o blog ouviu o economista César Grafietti, especialista em Banking e Gestão & Finanças do Esporte, que elaborou as regras de Fair Play da CBF. Sua visão sobre o preço real pago pelos clubes é bem diversa da divulgada. Dito isso, deixemos um spoiler: sua avaliação é de que os investidores pagaram mais do que valiam de fato as agremiações no frio dos números.
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Lembremos, antes, quais foram as operações. O Cruzeiro teve 90% de sua SAF negociada para Ronaldo em troca de um investimento de R$ 400 milhões. O Botafogo fechou a venda de 90% da SAF para o norte-americano John Textor com a previsão de aportes de R$ 400 milhões.
Nesta semana, o Vasco acertou a pré-venda de 70% de sua futura SAF para o fundo dos EUA 777 Partners com injeção de R$ 700 milhões. Nos três casos, os investidores assumem a responsabilidade pelas dívidas nos termos da Lei da SAF, com descontos de receitas de 20% e necessidade de pagar o restante ao final.
Em sua análise, Grafietti aponta que esses investimentos não podem ser considerados os preços de venda dos clubes. Sua explicação é de que a avaliação de um clube deve se basear na sua receita e na sua dívida. E o preço pago também deve levar em conta, principalmente, o débito.
O valor do investimento na empresa deve ser visto como algo separado, como aporte que o investidor faz para revitalizar a operação do futebol desses clubes. Então, destrinchemos ponto a ponto a análise do economista com explicações adicionais para ter maior contexto:
Como calcular quanto vale um clube?
"Vamos lá. Tem que separar a conversa em dois blocos: quanto vale e quanto foi pago. Valor e preço. O valor de um clube é algo muito complicado de se definir. Internacionalmente há algumas formas de fazer isso, mas em geral opta-se por definir um múltiplo da receita, pois considera-se que clubes com mais receitas têm maior potencial competitivo, então paga-se mais caro por clubes maiores."
"Fazendo esta conta você chega ao "Valor do Ativo". Por exemplo, usando um múltiplo de 2,5x as receitas (que fica acima da média europeia, mas que está em linha com um estudo que estou para publicar numa revista), um clube que fatura R$ 180 milhões valeria R$ 450 milhões. Por que o isso? Porque o comprador espera uma capacidade competitiva "X" com essa receita, e se colocar mais algum dinheiro turbiná-la pode aumentá-la em 30%, 40%, 50%. Com isso ele consegue valorizar o ativo para uma venda futura."
"A partir desse valor temos que deduzir as dívidas, para saber quanto sobra para o vender. É o mesmo conceito de um balanço: Ativo = Passivo + PL (Patrimônio Líquido). Dissemos que o ativo vale R$ 450 milhões, se tirarmos as dívidas sobram o Patrimônio Líquido. Se o clube dever R$ 700 milhões, significa que o Valor do Patrimônio Líquido é negativo. Ou seja, para alguém assumir o clube não faz sentido pagar nada ao vendedor, pois a dívida é maior que o valor do negócio."
Os números de Botafogo, Cruzeiro e Vasco para avaliação
(Nota do blog para detalhar os números dos clubes: Como estavam na Série B, os três clubes tiveram receitas reduzidas em 2021. Vasco, Botafogo e Cruzeiro devem ter fechado o ano com suas rendas variando entre R$ 140 milhões a 160 milhões, segundo informações das agremiações. Consideremos o valor médio de R$ 150 milhões. O total do ativo seria de R$ 375 milhões.
Desse número, teríamos de reduzir a dívida. O Vasco estima fechar o ano de 2022 com débito líquido de R$ 722 milhões. O último número disponível para o Botafogo (final de 2020) é R$ 946 milhões. Já o Cruzeiro acabou aquele ano com R$ 963 milhões de dívida. Não houve variações significativas nos débitos desses dois times, apenas alguns acréscimos. Ronaldo já afirmou que trabalha com o número de R$ 1 bilhão no Cruzeiro, o Botafogo também tem montante similar.
Ou seja, os três clubes têm casos de patrimônio líquido conta negativo. A avaliação das agremiações, portanto, seria o valor da dívida assumida.)
Mas quais foram os preços reais de Vasco, Botafogo e Cruzeiro?
"Agora vamos ao preço. Isso dependa da vontade do comprador e do interesse do vendedor. Como em qualquer negociação. Quando um comprador assume um ativo apenas pela dívida, significa que ele está pagando normalmente acima do valor, ou seja, teoricamente está pagando um ágio."
"Vamos pegar o Vasco. Se ele vale R$ 450 milhões pelo múltiplo (o número é um pouco menor como mostrado antes) - e alguém pode dizer que vale mais, pela torcida, pela história, pelo patrimônio, mas a realidade está refletida na receita. Se vale mais os atuais acionistas não conseguem extrair o valor disso - e tem dívidas de R$ 700 milhões. Como comprador assumiu as dívidas, ele está dizendo que paga R$ 700 milhões por 70% do clube. Logo, para 100% do clube o valor passa a ser de R$ 1,0 bilhão."
"No caso do Cruzeiro e do Botafogo, imaginando tudo igual (receita e múltiplo), mas uma dívida de R$1 bi. o cálculo seria: 90% vale R$ 1 bilhão + 10% que vale R$ 100 milhões, então o preço pós-aquisição seria de R$ 1,1 bilhão."
"Daí podemos perguntar: o Vasco custou menos que Cruzeiro e Botafogo? Custou. Mas, como a associação Vasco ficou com um percentual maior, ela passa a ter um valor potencial futuro caso o valor do negócio aumente. É uma espécie de "earn out", ou seja, ganho futuro."
E como entra nessa conta o investimento na SAF? Não é isso que torna o negócio bom ou ruim?
"O investimento é outra coisa. Se o 777 comprasse e não aportasse nada, o ativo continuaria ruim. Logo, para ele transformar esse ativo precisa injetar dinheiro, investir. Isso se transformará em valor futuro? Não dá para saber. O dinheiro pode ser usado para pagar dívidas, o investimento em base pode não gerar vendas nem atletas para uso, pode gastar parte para contratar veteranos que não geram resultado. Só saberemos se isso se transformou em valor se o clube aumentar suas receitas no futuro.
No Cruzeiro o Ronaldo vai colocar R$ 400 milhões, mas parte disso é apenas para fazer o negócio andar, colocar algumas dívidas em ordem. Logo, não dá para dizer que ele aumentou o valor do ativo. Ele apenas está mantendo o negócio operando."
Então os clubes brasileiros foram vendidos acima do seu valor?
"Sim, podemos dizer isso. Inclusive, é um erro dizer que foram baratos. Não foram. Houve um bom ágio, que me parece associado ao fato de serem marcas fortes, mas degradadas, e também porque existe uma expectativa de recuperação rápida por estarmos num mercado desregulado. Com liga, fair play financeiro, reestruturação de dívidas o valor tende a crescer."
Há exemplos similares no exterior?
"Só casos de clubes em enormes dificuldades, muito comuns na Inglaterra. Assume-se o clube que está sob administração - uma espécie de intervenção - e tentam recuperá-los. O Derby County está nessa situação, por exemplo. O mercado de negociação de clubes é bastante maduro na Europa, e a maioria dos clubes tem valor acima das dívidas, seja porque os donos costumam cuidar mais, seja porque há controles via fair play financeiro."
O investidor aporta dinheiro no início, mas seu objetivo é ter lucro. Ele vai tirar dinheiro do superávit com receias maiores ou em venda posterior?
"Sim, teoricamente está correto. Mas analisando os modelos mais comuns na Europa, os investidores só tiram dinheiro ao longo do tempo quando negociam atletas por valores relevantes. Não vemos isso diretamente nos balanços, mas entram como "comissões". O modelo mais comum é investir para fazer o clube crescer e fazer o ganho na venda. Um exemplo da semana passada é a Atalanta. Em 2010 o Antonio Percassi pagou 14 milhões de euros por 70% do clube, que faturava perto de 30 milhões de euros (múltiplo de 0,67x as receitas). Na semana passada vendeu cerca de 50% por 200 milhões de euros, o que significa um valor de 400 milhões de euros para uma receita da ordem de 250 milhões de euros (múltiplo de 1,6x). Ao longo do tempo ele reinvestiu tudo que o clube ganhou e só o lucro das vendas de atletas entre 2017 e 2021 foi de 300 milhões de euros."