Primeira agremiação no Brasil a ter reconhecido na Justiça o direito ao Regime Centralizado de Execuções (RCE), o Vasco também enfrenta as consequências do pioneirismo em um mecanismo jurídico recente e ainda pouco explorado. O caso do clube, que de duas semanas para cá precisou pagar mais de R$ 3 milhões em dívidas para escapar do transfer ban, expôs uma brecha no RCE interpretada por alguns credores como oportunidade de "furar a fila" via Fifa e CBF.
Dentro dos processos centralizadores que correm na Justiça do Trabalho e no Tribunal de Justiça, houve uma discussão nos últimos meses sobre como o clube, sufocado em dívidas e cobrado de todas as partes, deveria agir em relação ao assunto. Até que uma decisão publicada há pouco mais de um mês pela presidente do Tribunal Regional do Trabalho deu o norte: foram retirados da lista do RCE todos os credores com execuções na Fifa e na Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD), que é a corte arbitral da CBF.
A partir daí, o Vasco entendeu que havia segurança jurídica e pagou os cerca de R$ 1,4 milhão que devia ao treinador Ricardo Sá Pinto e aos portugueses Igor Gameiro Dias e Rui Tomás Faustino, membros de sua comissão técnica. O clube estava desde maio impedido pela Fifa de inscrever novos jogadores e só pôde regularizar a situação de Alex Teixeira, por exemplo, depois que efetuou o pagamento.
Na última segunda-feira, para evitar um novo transfer ban, o Vasco também precisou pagar aproximadamente R$ 1,7 milhão a Maxi López - essa é apenas uma parte da dívida de R$ 5.283.391,17 executada pelo atacante argentino na CNRD. A informação do pagamento a Maxi López foi publicada primeiramente pelo canal "Atenção Vascaínos".
- A gente foi muito cuidadoso nisso para não dar um passo em falso - explicou à reportagem um dirigente vascaíno.
"O RCE é um instituto jurídico novo, está todo mundo tateando, navegando para ver como funciona, então a gente só podia tomar decisões que estivessem fundamentadas", acrescentou.
Maxi López vestiu a camisa do Vasco entre 2018 e 2019. Sá Pinto comandou a equipe ainda mais recentemente, no final de 2020. Portanto, existe um entendimento na Comissão de Credores de que a exclusão das execuções via Fifa e CNRD da lista abriu um precedente para furar a fila, já que há gente que passou pelo clube há mais de duas décadas entre os casos de jogadores e treinadores que tem alguma quantia a receber.
A discussão nos autos
O Vasco teve reconhecido o direito ao Regime Centralizado de Execuções em agosto do ano passado. Desde setembro, mês seguinte, portanto, vem depositando religiosamente 20% de sua receita corrente mensal numa conta da Justiça com a finalidade de abater suas dívidas.
O RCE do clube é desmembrado em dois processos: um no Tribunal de Justiça, que centraliza as dívidas de natureza cível, e outro na Justiça do Trabalho, que lida com as de natureza trabalhista.
Ricardo Sá Pinto, Igor Gameiro e Rui Tomás executaram o Vasco na Fifa em dezembro de 2021, com sentenças favoráveis e sem direito a recurso proferidas em fevereiro deste ano. O clube, então, procurou entender judicialmente o que deveria ser feito. Na esfera cível, a Justiça permitiu em março a inclusão das dívidas Fifa e CNRD - é o entendimento em vigor até hoje, embora não haja na lista cobranças executadas por essas cortes.
No RCE trabalhista, a primeira decisão só saiu no dia 6 de maio. Num primeiro momento, a presidente do TRT autorizou a inserção da dívida com Maxi López, que passou a constar na lista no mês seguinte, e ratificou a inclusão da dos portugueses, que constavam liminarmente na relação desde abril.
Em junho, a defesa de Maxi López pediu a reconsideração dessa decisão. Argumentou que "estão sujeitos aos RCEs apenas os credores que detenham créditos líquidos de natureza civil ou trabalhistas com processos jjudiciais que estejam em fase de execução, o que não é caso dos créditos oriundos dos procedimentos perante a CNRD".
Há pouco mais de um mês, no dia 30 de junho, a desembargadora voltou atrás no seu entendimento e aceitou o pedido de Maxi López e da Comissão de Credores.
Ato contínuo, foram excluídas da lista do RCE as execuções de Maxi López, dos três portugueses e do paraguaio Raúl Cáceres, que atuou no Vasco em 2019 e recorreu aos seus direitos na CNRD. O clube deve a ele pouco mais de R$ 250 mil.
Só a partir dessa exclusão é que o Vasco se sentiu seguro juridicamente para efetuar os pagamentos. Isso explica, por exemplo, o fato de o clube não ter destinado a esse fim parte dos R$ 70 milhões emprestados pela 777 Partners. O dinheiro emprestado em fevereiro acabou no início de junho.
O que dizem a Fifa e a CBF
Na versão mais recente do Regulamento de Status e Transferências de Jogadores, artigo 24.3, a Fifa diz que as consequências pelo descumprimento de uma execução podem ser suspensas caso "o clube devedor esteja sujeito a procedimento relativo à insolvência, previsto em sua lei nacional, que o impossibilite de cumprir com a ordem de pagamento".
O Vasco entende que o RCE trata-se de um procedimento de insolvência e argumentou isso à Fifa, nos processos em que foi executado por Sá Pinto e os portugueses. A entidade máxima do futebol, no entanto, manteve sua decisão sob a justificativa de que o procedimento deveria ter sido avisado antes da sentença - ou seja, antes de fevereiro.
Por sua vez, o regulamento da CNRD não prevê nada parecido. O mais próximo a isso é um trecho que explica que "na aplicação das sanções previstas neste Regulamento, a CNRD deve levar em conta a proporcionalidade, a razoabilidade e a capacidade econômica da pessoa sancionada".
A CBF foi notificada para prestar esclarecimentos no processo do RCE do Vasco e chegou a peticionar nos autos em abril, mas o conteúdo da manifestação está sob sigilo por um pedido da própria entidade.