Política

Como a história perceberá o dirigente mais polêmico dos 120 anos do Vasco?

Eurico Miranda assistiu à vitória do Vasco sobre o Nova Iguaçu por 4 a 2 de seu escritório em São Januário, em seu último ato como gestor do clube — ele já havia deixado a presidência, mas uma decisão judicial o manteve no comando até hoje, ao lado de Julio Brant e Fernando Horta, que foram candidatos na eleição entre sócios.

O mandatário deixa marcas profundas num Vasco que, na noite de hoje, empossará Alexandre Campello como presidente do próximo triênio. No momento da saída, ele não promete deixar a vida política do clube, mas enseja a pergunta: se o grande benemérito influente continuará,

Foto: Marcelo Cortes / FotoarenaEurico Miranda
Eurico Miranda

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Há quase 50 anos, um ainda jovem advogado Eurico Miranda entrou pela porta de São Januário para ocupar seu primeiro cargo politico do clube: diretor de cadastro, em 1967. O ex-presidente só alcançou o cargo máximo do clube em 2001, 14 anos depois de se candidatar a primeira vez, mas o poder e a forma de gerir de Eurico estão impressos no cruzmaltino desde os anos 80.

O Eurico dos anos 90 é lembrado por muitos dos que foram ouvidos pelo GLOBO como um dirigente visionário. Como vicepresidente de futebol de Antônio Soares Calçada, foi mentor da épocas mais vitoriosa do clube, com uma Libertadores, três Brasileiros e nove Cariocas.

— Ele começou a ganhar poder na época do (ex-presidente Antônio Soares) Calçada. Ele sempre confrontava os outros diretores, que não eram tão duros quanto e acabavam baixando a cabeça. Tinham medo dele — avalia o ex-jogador do Vasco nos anos 70, Dé Aranha. — Foi crescendo e deixaram que ele fizesse do Vasco a casa dele. Era época da malandragem no futebol, todo mundo dava volta em todo mundo e o Eurico era uma águia. Era o mais esperto de todos e tem o dom da palavra.

Cada vez mais influente na Federação de Futebol do Rio (Ferj) e na CBF, a “águia" acostumouse a resolver problemas com demonstrações de força nos bastidores. A chegada à presidência, nos anos 2000, ressaltou um perfil centralizador, avesso a críticas e implacável com adversários e críticos na imprensa.

— As passagens como presidente foram complicadas. Ele deixa uma imagem autoritária, não modernizou a forma de fazer negócio — analisou o jornalista Pedro Venâncio, autor do livro “Nasce o gigante da colina”.

Apesar das reclamações devido ao seu modelo de gestão, até críticos de Eurico costumam classificar o dirigente como um homem de palavra, alguém que conversa às claras com seus funcionários e cumpre o combinado. Neste último triênio (201517) como presidente do Vasco, procurou reforçar a atenção ao patrimônio social do clube. Não foram poucas as vezes em que o dirigente enalteceu obras feitas por ele mesmo em São Januário, em especial no ginásio e na piscina, que estavam deteriorados. O comportamento, além de contraponto ao período com poucas conquistas (e mais um rebaixamento) no futebol, revela o cuidado em agradar os associados tradicionais do clube.

— Eurico é um dirigente à moda antiga, mas não é totalmente retrógrado. Ele já teve visões modernas, como lutar contra o calendário que obriga os times a jogar a cada dois dias — pondera Jefferson Gomes Almeida, um dos autores do livro “Um Expresso Chamado Vitória”. — A atitude fez dele uma pessoa de extremos. Não existe meio termo com relação ao Eurico: ou é 8, ou é 80.

CONTRASTE RECENTE A reta final do último mandato realça um contraste. Primeiro, a fisionomia abatida, a voz rouca e o nítido cansaço físico de um homem que enfrenta problemas de saúde com trabalho incansável — há pouco mais de um ano, fez procedimentos médicos por conta de um tumor na bexiga. Quando anunciou que seria responsável pelo clube até domingo, só o inseparável charuto fazia lembrar o dirigente com fama de obstinado, personalista e idiossincrático.

Em menos de 48 horas, o mesmo Eurico combalido não só buscou fôlego para brigar (mais uma vez) pela validação da urna 7, como foi peça-chave no realinhamento de grupos políticos que tornou Alexandre Campello vencedor da eleição do Vasco. Brant, o mais votado entre sócios, sofreu uma derrota inédita no conselho, cumprindo a expectativa de temor que fez um dos atuais desafetos de Eurico sair da águia para um réptil a fim de descrevê-lo na manhã da quinta-feira, antes da eleição.

— Conhecendo o Eurico... é foda. É que nem lagartixa: você pode cortar um pedaço do rabo, mas, se deixar, cresce de novo. Enquanto se esquiva do “ponto final” que opositores — e até aliados — tentam lhe atribuir, Eurico ensaia um posicionamento à margem da administração do clube, mas sem se afastar de articulações políticas. Abertamente, o expresidente afirma que seu único objetivo é alcançar o comando do Conselho de Beneméritos, em votação que deve acontecer nas próximas semanas, e em seguida cuidar da saúde.

A função, já ocupada por ele nos anos em que seu adversário Roberto Dinamite foi presidente do clube, permite direcionar intervenções na sede social e pedir satisfações periodicamente da diretoria. Mas nada disso é mais importante do que uma terceira função: controlar quem entra no rol dos sócios beneméritos e grandes beneméritos, responsáveis por 50% do colégio eleitoral no Conselho Deliberativo. A eleição de Alexandre Campello provou a influência de Eurico nesse círculo do poder cruz-maltino: dos pouco mais de 100 conselheiros natos que estavam na sede náutica da Lagoa, na noite de sexta, estima-se que menos de 20 votaram em Julio Brant, apoiado pelo desafeto de Eurico, Olavo Monteiro de Carvalho. DESCANSO? Na véspera da eleição no Conselho Deliberativo, aliados e opositores concordavam em dois pontos. O primeiro é que a longa disputa envolvendo a urna 7 foi desgastante, e que Eurico merecia descanso. O segundo consenso é que a força política dele não se extinguiu.

Se na quarta-feira Eurico parecia “sem chão" e “fora do ar", segundo pessoas que tiveram contato com o dirigente, no dia seguinte a rotina já dava sinais de normalidade. Ele chegou a São Januário no início da tarde, reuniuse com aliados e até desceu ao vestiário para conversar com os jogadores antes da partida contra o Bangu.

— Eurico sempre se manteve numa linha de ação: quando acha que precisa intervir, desce lá no vestiário e conversa. É um cara de papo muito reto, com ele não tem 1h de conversa: resolve em 10, 20 minutos — conta Valdir Bigode, ex-atacante e atual auxiliar técnico.

A postura ativa, por vezes intransigente, tem seu preço. Antes da votação de sexta-feira, aliados de Eurico diziam que um afastamento da política vascaína faria bem à sua saúde. Uma pessoa próxima ao dirigente garantia que até seus filhos, Euriquinho e Alvaro, cogitavam abrir mão da vida de dirigentes do clube para se dedicarem a atividades menos desgastantes. Conversa de bastidores à parte, não era esta a imagem que a família Miranda transmitia depois da vitória de Campello — em certa medida, uma vitória do próprio Eurico —, já na madrugada de sábado. Mesmo descartando participar da nova diretoria, um revitalizado Eurico mostrou que o cansaço não é um problema tão grande como se pensava. Força política, muito menos.

— Ainda vou durar muito tempo. Não vai me ver fora do Vasco. Publicaram que eu ia sair pela porta dos fundos, que eu ia ser derrotado. Não há hipótese de eu ser derrotado no Vasco — sentenciou para os livros. Anote-se.

Nascido e criado pela rivalidade, com ímpeto para quase tudo

É bem possível que, num esforço de memória, a imagem mais remota que a maior parte dos vascaínos tenha de Eurico Miranda no Vasco seja do heroico resgaste de Roberto Dinamite no Barcelona em 1980. Ao evitar que o ídolo fosse parar no rival Flamengo, Eurico foi incensado como único vascaíno capaz de enfrentar o arquirrival — uma rivalidade que fez questão de acirrar, não por acaso. Forjava-se um mito.

Mas a face real do personagem em questão, que durante anos comandou São Januário, talvez tenha se mostrado nua e cruamente em 25 de setembro de 1969. Aos 24 anos, Eurico de Oliveira, como era conhecido o vice de Patrimônio, defendia com ardor o presidente Reinaldo Reis, que tinha a administração contestada. Naquela noite, o Conselho Deliberativo se reuniu para cassar Reis. O desfecho era iminente, até que alguém apagou a luz da sede da Lagoa, numa desesperada tentativa de parar o processo. Em vão. A luz voltou, e Reis foi cassado.

Mas havia um fotógrafo atento. No dia seguinte, O GLOBO publicou uma foto, com o título “Mão de Eurico”; e a seguinte legenda: “Vice de Patrimônio apagou as luzes”.

A impetuosidade sempre fez parte de sua personalidade. Vinte anos depois, já Miranda, Eurico se tornou braço-direito de Ricardo Teixeira, recém-eleito presidente da CBF. Era o chefe supremo da seleção brasileira. Às vésperas da Copa América de 1989, ele articulou outro golpe contra o arquirrival. Pela estratégia, um feito maior que o de 1980. E o Flamengo ajudou. Com dificuldades para renovar o contrato do jovem e talentoso Bebeto, o Flamengo fixou seu passe na federação para ganhar tempo na negociação.

A seleção estava no Rio, concentrada num hotel em São Conrado. Eurico usou o restaurante do hotel para negociar com José Moraes, procurador de Bebeto, a transferência do craque. Contou com a prestigiosa colaboração do presidente do Flamengo, Gilberto Cardoso Filho, que fermentou a insatisfação do jogador com declarações em que fazia pouco caso do atacante. Diante de rumores do interesse do Vasco, Gilbertinho aproveitou um encontro com o presidente Antônio Soares Calçada para saber se o Vasco tinha interesse em Bebeto. O dirigente vascaíno disse que não. Dias depois, Eurico sacramentava a contratação.

A presidência do Vasco seria uma questão de tempo para Eurico Ângelo de Oliveira Miranda.

Fonte: Agência O Globo
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