A tática é antiga, mas ganhou ar de modernidade. Para fazer dar certo o projeto de clube-empresa, o Vasco aposta em algo que no passado rendeu a construção de São Januário e no presente a do CT Moacyr Barbosa: a força da sua torcida. É na emissão de títulos de dívida (as chamadas debêntures), a serem comprados especialmente por vascaínos, que a direção acredita ser possível captar recursos para investir e operar o futebol.
O processo não é simples, depende de aprovação de poderes do clube, gera dúvidas e demanda dinheiro para aprofundar estudos e fazer a migração de modelo. Mas começou na segunda-feira, quando o presidente Jorge Salgado se reuniu com Carlos Fonseca, presidente do Conselho Deliberativo, e com Antônio Peralta, presidente do Conselho de Beneméritos, e entregou o pedido para que seja avaliada e votada a autorização para o futebol do clube se transformar em SAF (Sociedade Anônima do Futebol), possibilidade prevista em lei federal sancionada em agosto.
É um tema que causou surpresa, uma vez que não foi abordado na campanha da Mais Vasco, grupo que elegeu Salgado. Além disso, a comissão do Conselho Deliberativo que analisa a reforma do estatuto tem trabalhado no texto para a adequação do Vasco à legislação do clube-empresa.
De toda forma, a direção planeja acelerar o processo. O projeto ainda é embrionário e não há prazo para ser colocado em prática. A ideia, em caso de aprovação no Conselho Deliberativo, é desenvolvê-lo no início de 2022. Com uma premissa fundamental: 100% do controle da empresa a ser criada será da associação civil Club de Regatas Vasco da Gama, segundo a atual direção - mesmo que haja previsão, no documento, de ingresso de acionistas e venda de novas ações.
O ge conversou com o segundo vice geral, Roberto Duque Estrada, e o vice jurídico, Zeca Bulhões, sobre o assunto. A dupla indicou quais os próximos passos, reiterou que o Vasco não será vendido e defendeu a ideia como uma possibilidade de o clube, que disputará a sua quinta Série B em 2022 e convive com extremas dificuldades financeiras, voltar a ser competitivo. Mesmo que as debêntures tenham perdido, no andamento do projeto de lei, a isenção fiscal.
Como o Vasco pretende constituir a SAF?
Zeca Bulhões: Há diferentes formas de constituição da SAF previstas na lei. O regime jurídico é o mesmo, mas o que muda é forma de constituir a empresa. Pode ser cisão, nova, aporte de capital... Isso vai ser discutido ainda. O que fizemos agora é o começo de um processo longo, que ainda terá muito debate e será estudado com advogados e especialistas.
Duque Estrada: Entre desses clubes de maiores torcidas do Brasil, o Vasco entende que tem que largar na frente. Como o Vasco não tem um procedimento para poder fazer a empresa, tenho que pedir autorização do Conselho Deliberativo. É um processo que em algum momento teríamos que começar. Encaminhamos o oficio ao presidente do Conselho Deliberativo, com esses objetivos. Seria uma empresa 100% do Vasco. O Conselho vai avaliar. A gente quer caminhar para um bom senso. Precisamos muito de um instrumento de levantamento de recursos, é o instrumento mais adequado. Esse é o caminho. Não vejo outro. Dá para continuar tocando do jeito que está, mas a duras penas. Os juros serão maiores. O dinheiro custa muito caro.
Mas há alguma preferência?
Zeca Bulhões: Estamos introduzindo o debate para avaliar as alternativas que temos na mesa. Vamos debater internamente e aprofundar os estudos. Isso leva algum tempo. O que posso dizer é que o Vasco terá 100% do controle da empresa.
Mas como, então, o Vasco vai atrair investidores sem dar percentual da nova empresa?
Zeca Bulhões: A ideia é que o Vasco faça seu resgate pela própria torcida. O estádio de São Januário foi construído com dividendos em 1920. O Vasco botou no mercado títulos, e a torcida ajudou. Nossa torcida é muito participativa, a quinta maior do Brasil. Temos que mudar um pouco o relacionamento e, com a nova lei, isso é possível. A ideia agora é emitir debêntures (títulos de crédito) para a reconstrução do clube. Não há a previsão de investidor. Não vamos vender ações. Estamos discutindo uma solução do Vasco para o Vasco, estamos discutindo como a gente cria mecanismos para operar o futebol, que é uma atividade cada vez mais custosa. Assim, com essa emissão de títulos, teríamos meios de acesso a financiamento mais barato.
O Vasco, então, não será vendido?
Zeca Bulhões: Não. Não há essa previsão. Todo o patrimônio do clube continuaria com a associação civil, que hoje se chama Club de Regatas Vasco da Gama. O clube e a SAF fariam um contrato para o uso da marca exclusivamente na atividade do futebol. Assim como um contrato para o uso de São Januário.
Além de ajudar o clube, qual seria a vantagem do torcedor ao comprar um título do Vasco?
Zeca: Com a SAF, a gente consegue retribuir ao torcedor de mais de uma forma. Com profissionais de mercado tomando todas decisões importantes do futebol. Ao mesmo tempo, se oferece um retorno ao torcedor que investir na compra do título (valores e percentuais ainda não estão definidos). O custo para o Vasco é muito mais em conta do que se consegue em bancos. A lei diz que a debênture deve ter um retorno pelo menos igual à poupança. O investidor só terá uma taxação de 15% do Imposto de Renda sobre o rendimento.
Por qual motivo este tema não foi falado na campanha do presidente Jorge Salgado? Há a impressão de que ele foi omitido do torcedor.
Zeca: Não tinha previsibilidade de regulamentação da lei. Teve o projeto do deputado Pedro Paulo em 2019, que foi aprovado na Câmara dos Deputados. Mas não andou no Senado. Agora, há a nova lei. Não acho que passe essa imagem de que omitimos. A gente como gestor tem o dever de explorar todas as possibilidade. Estamos só introduzindo o debate para que a comunidade vascaína decida sobre os meios de financiamento existentes para voltarmos a ter competitividade.
O item 7 do ofício enviado pelo presidente Salgado aos demais poderes do clube fala na possibilidade de novos investidores e emissão de novas ações. Desta forma, o Vasco não teria 100% do controle da nova empresa. Isso não é uma contradição?
Zeca: O plano é constituir uma SAF 100% do Vasco e conseguir os meios de financiamento. Ao mesmo tempo, o estatuto da SAF precisa preparar a operação dela. Então, tem de ter todas as regras de acordo com as melhores práticas do mercado. Neste contexto, o estatuto tem de estar preparado para, no futuro, se aparecer uma oferta, definir o que pode ser feito. Agora não se está sendo pensando nisso. Qualquer investimento terceiro na SAF terá de ter aprovação do Conselho Deliberativo e posteriormente do associado em Assembleia Geral. Se e quando surgir investidor, se analisa e a maioria decide. É necessário estar preparado para o futuro. Estatuto não é uma coisa que se muda todo ano. Tem de estar preparado para o mercado que vai se abrir. Se acontecer lá na frente, terá de passar por todo esse procedimento.
O Vasco é viável sem a SAF? Recentemente, o presidente Jorge Salgado disse que o Vasco era viável mesmo sem voltar para a Série A.
Zeca: Temos dois caminhos. Ou seguimos como associação, estamos com a centralização das execuções, com 20% das receitas sendo destinadas para o pagamento de dívidas. Nos próximos anos teremos que apertar o cinto e teremos menos capacidade de investimento no futebol. Esse é um momento de transformação de mercado, temos que nos preparar para aproveitar as oportunidades. O segundo caminho é viramos uma SAF e consigamos fazer as duas coisas ao mesmo tempo, com mais dinheiro para pagamento de dívidas e de investimento no futebol.
Duque Estrada: A viabilidade existe. A diferença é a qualidade do investimento. A viabilidade para resolver seus problemas mais rapidamente é muito melhor com a SAF. O Atlético-MG no fim do ano passado era um clube viável e competitivo, mas com investimentos acelerou. Então, a ideia é acelerar investimentos no futebol, se tornar competitivo, num momento de transição do futebol brasileiro para quem estiver disposto e preparado. Queremos estar na vanguarda disso: a colocação de debêntures para a torcida ajudar o Vasco.
Quais são os prazos e os próximos passos?
Duque Estrada: Com a aprovação do Conselho, vamos começar os estudos, tudo da melhor forma possível. Não é uma coisa rápida. Até em clubes como Botafogo e Cruzeiro, em que o clube-empresa já é unanimidade há muito tempo, demandou um tempo. Ontem (segunda) apresentamos o pedido para o presidente do Conselho encaminhar aos beneméritos para que possa se marcar uma reunião e uma votação, para que tenhamos a autorização para se criar empresa. Estamos estudando escritórios de advocacia, empresas especializadas. Tudo isso é um trabalho e um progresso. Não é de hoje para amanhã. É novo para todo mundo. A lei é de agosto. É difícil dar uma projeção. A ideia é ter aprovação do Conselho até o final de dezembro. Começar o trabalho de formação da empresa entre janeiro e fevereiro. Depois tem o desafio da implementação. Nós queremos ser pioneiros. É um ciclo que pode ser mais longo, mas não poderíamos ficar parados.
Zeca: É o primeiro encaminhamento para debater o tema internamente. A lei é muito recente, de 6 de agosto. A gente como gestor tem que estudar, vai ter uma mudança no mercado, o Vasco tem que estar preparado. Os estudos vão ser feitos, debates, é o início de uma conversa que teremos internamente. É nosso interesse que o clube esteja preparado para oportunidades de negócios que possam surgir.
Por que clubes melhor estruturados financeiramente ainda não aderiram à SAF?
Duque: Cada clube é um clube. É o jeito de conseguir dinheiro mais barato e mais rápido. Os outros talvez não tenham tanto interesse em se antecipar e estão aguardando, tudo muito novo. Talvez eles consigam dinheiro mais barato, no momento. Mas acho que no fim das contas esse é o caminho de todo mundo. É um caminho profissional. A era do amadorismo tem que acabar, com toda instabilidade política a cada três anos, ninguém pensando a longo prazo.
Como vai funcionar a SAF em relação às atuais dívidas do Vasco?
Zeca: O dinheiro emitido pelo Vasco com emissão de debênture é uma dívida. Não é receita. Então, ele não seria usado para pagar outras dívidas. Ele seria usado no futebol. A associação civil segue com as dívidas. Com a receita que a SAF gerar, se paga o passado. O regime tributário da SAF simplificado: 5% sobre a receita mais 8% de INSS sobre a folha. Está excluída da base de cálculo a venda de jogador por cinco anos. Após, cai para 4% e aí incide a venda de jogador. Há um estudo de que 0,72% do PIB brasileiro tem a ver com futebol. Então, o Congresso criou mecanismos para movimentar o mercado. Vivemos uma crise contínua desde 2013, e o futebol tem muitos outros segmentos que competem por receita do público, como times estrangeiros, streaming... Era preciso ter uma alternativa para movimentar o mercado.