Diretor da Sociedade Mineira de Infectologia e consultor científico da Sociedade Brasileira de Infectologia, Carlos Starling é membro da Comissão Médica Especial da CBF que elaborou o protocolo para a retomada do futebol durante a pandemia de Covid-19. Acompanhou, ao longo de meses, a aplicação destas medidas. Após a produção de 116 mil inquéritos epidemiológicos, com a realização de 89 mil testes em 13.237 pessoas, está convicto de que o esporte — praticado profissionalmente — não é um vetor de propagação da doença. Ainda assim, ele entende que a bola agora precisa parar de rolar no país.
O futebol deve parar neste momento?
Para segurar a epidemia, já teríamos que ter feito várias interrupções de mobilidade social. Já perdemos um tempo precioso. Esta epidemia cresce em proporções geométricas. Então, minha opinião é que caso determinada região estabeleça lockdown, não só o futebol deve parar, como todas as outras atividades não essenciais.
Mas nossa definição de atividade essencial tem ficado muito ampla. Então, o que acaba acontecendo é que a mobilidade social continua, e em atividades que não fizeram uma investigação detalhada sobre o impacto delas na incidência da epidemia. Não foi o caso do futebol. Ele fez um protocolo extremamente rígido que implicou em testagens de todos os participantes dos jogos de todas as séries 72 horas antes de cada partida, com separação das pessoas que estavam positivas e afastamento delas por dez dias. Sendo que os contactantes vão para o jogo e são acompanhados e monitorados pelos médicos dos próprios times.
Isso implicou numa produção de um banco de dados gigantesco com mais de 116 mil inquéritos epidemiológicos e mais de 89 mil testes de RT-PCR. A investigação envolveu 13.237 atletas em mais de 2.420 partidas. E dos cruzamentos feitos entre os times não foi observada transmissão dentro dos jogos. Ou seja, entre um time e outro.
Então os jogos são seguros?
Quando marcamos no GPS, o contato entre um jogador e outro durante um jogo é de, no máximo, 1 minuto e 30 segundos. E isso não é suficiente para ter transmissão num ambiente a céu aberto. Então, com os protocolos, a partida é segura. Apesar das aberrações que observamos dentro dos próprios times, como pessoas sem máscara fazendo festa no vestiário. Isso tudo que é condenável não foi suficiente para provocar incidência maior que 2,2% quando somamos todos os expostos no ambiente do futebol. Esta amostra de 13 mil (jogadores) é muito significativa.
A análise dos dados que envolvem o futebol nos faz pensar numa coisa: Quem não usou máscara e promoveu aglomerações em torno de si? Quem banalizou cuidados básicos para o controle de higiene? Quem incentivou uso de drogas inúteis para tratamento e prevenção da epidemia? Quem desdenhou das vacinas? Temos que perguntar tudo isso antes de dizer que foi o futebol ou de arranjar um bode expiatório para responsabilizar por esta epidemia. Certamente não foi o protocolo do futebol o responsável pelo avanço dela.
O futebol foi feito de bode expiatório?
Estamos em colapso nacional. Por isso, defendo que precisamos parar e vacinar rapidamente. Mas é mais fácil culpar o futebol. O escritório de advocacia está aberto, a construção civil está funcionando, mas a indústria do entretenimento e do esporte têm que parar? Ou nós fazemos uma coisa mais densa, mais rigorosa, ou não vamos frear a epidemia. Não é parando só o futebol que vamos controlá-la. É outra coisa que está alimentando a epidemia. É a ruptura dos protocolos no seio da comunidade estimulado pelas autoridades em geral.
Mas se o futebol é tão seguro por que deve parar?
Uma coisa é o protocolo do futebol ser seguro, outra é a regra de um Estado. Se tudo tem que parar, não vale o futebol não obedecer. Agora, dentre as atividades não essenciais, a que estudou melhor a sua dinâmica foi o futebol. Claro que ainda tem muita coisa a ser estudada. Os protocolos, seja no meio que for, são uma peça viva. Têm que ser revistos e aprimorados. Mesmo em lockdown rigoroso a Europa não parou (com o futebol). E as taxas caíram. Então é um fato comparativo que leva a pensar e que vai de acordo com os estudos feitos por nós de que não há relação entre o futebol e a incidência na comunidade. São coisas descoladas.
Agora, o mau exemplo das torcidas pode ser uma evolução do protocolo. Uma proposta que fiz é a de que a torcida que aglomera seja tratada como a que invade o campo. Então o time é punido junto. Não sei se vai ser absorvida.
Em alguns estados, os jogos estão suspensos, mas não os treinos. Esta medida faz algum sentido?
Nenhum. Os surtos acontecem dentro dos times por quebra de protocolo. Porque, no fim das contas, a rotina do clube é menos fiscalizada do que a partida. Então essa medida é do desconhecimento. Dizem: “Ah, mas morrem milhares por dia e as pessoas estão jogando futebol?” Estão morrendo milhares e tem programas de humor na TV. E tem música. O que tem a ver uma coisa com a outra? O futebol tem um papel mitigador de doença mental, como a música e o teatro. Temos que arranjar um novo jeito de inventar a realidade. Porque o vírus é maratonista. Exige de nós fôlego para fazer ciência a longo prazo.
Mas as viagens que competições nacionais exigem não são um risco?
Só viajam os que estão negativos. Então é mais seguro viajar ao lado de uma delegação de futebol do que com um passageiro que você não sabe quem é. Porque são mais comuns do que se pensa os casos de pessoas que são diagnosticadas com a doença e viajam para se tratarem em outros estados.
E quanto aos jogos internacionais?
Não há diferença desde que as regras sejam cumpridas. Sejam elas estaduais, nacionais ou internacionais. Os campeonatos não precisam ser interrompidos se as regras foram estabelecidas. Agora, as políticas de estado têm que ser respeitadas de olhos fechados. Se um estado ou país estabelecem determinada regra, ninguém pode mudar. Não cabe a nenhum setor da comunidade questionar esta regra, violar estes princípios. Isso jamais.
Recentemente, dois atletas do Santa Cruz jogaram assintomáticos. Só descobriram através do exame feito posteriormente para a Copa do Brasil. Isso ocorreu porque o Campeonato Pernambucano só exigia testes de 15 em 15 dias. Não seria o caso do futebol brasileiro adotar um protocolo unificado?
Não tenho a menor dúvida. Temos que usar o protocolo que foi testado, o da CBF. Ele foi elaborado e submetido a um teste e acompanhamento epidemiológico extremamente rigorosos e, portanto, não pode ser menos que isso (pelo Brasil). O protocolo cumprido detecta. E este é um dos objetivos e ensinamentos: detectar assintomáticos é chave. Seja para controle da transmissão no futebol, seja para a epidemia no país.
Em Porto Alegre, a final da Copa do Brasil foi disputada no horário do toque de recolher para evitar que os torcedores se aglomerassem em bares. Em outros estados, jogos têm sido transferidos para a faixa de horário permitida. Qual medida faz mais sentido?
É algo que temos que achar a melhor maneira. Se você tem o toque de recolher, não pode promover nenhuma mobilidade no período, exceto as essenciais. O raciocínio no Rio Grande do Sul foi diferente: fazer à noite para evitar aglomerações. Agora, são situações em que os protocolos têm que evoluir. E isso não é protocolo que tenha governabilidade da parte científica da CBF. Está ligado às regras de saúde pública de cada região, que têm autonomia para defini-las. O futebol tem simplesmente que obedecer o que for definido pelas autoridades. Não vale ao futebol questionar ou violar as regras em interesse próprio. Quem manda nos municípios e estados são as autoridades locais. O futebol tem que seguir as regras, independentemente de ele ser seguro ou não. Isso é obediência civil. Não tem conversa.
Isso é absolutamente fundamental. Não só o futebol, todos os esportes. Mas, no Brasil, ele tem essa visibilidade maior. Fez um estudo muito bom do qual tive orgulho de participar, mas tem um caminho muito longo pela frente no que se refere a dar exemplo e educar a própria comunidade. Não podemos perder a chance de dar bons exemplos, e não maus.
Quando você vê jogador desrespeitando as regras, isso prejudica a imagem dele e do esporte que pratica. Os jogadores de grande visibilidade que fazem isso prejudicam os 90% que ganham um salário ou que exercem o futebol quase que de forma heroica nos cantos do país. Prejudicam o futebol feminino, o de base, tudo. É um 7 a 1 contra. Os maus exemplos têm que ser identificados e condenados.