Acostumado a ouvir perguntas e mais perguntas de jornalistas sobre a derrota na Copa de 1950, os olhos de Barbosa brilharam quando um homem o reconheceu em Praia Grande, litoral santista, e fez referência ao goleiro histórico do Vasco. Aquele do Expresso da Vitória, do Campeonato Sul-Americano invicto de 1948, de tantos títulos pelo clube de São Januário e das glórias pela Seleção. Das lembranças mais bonitas, um troféu que parecia um pedaço do destino: a Taça Teresa Herrera, a tradicional competição de verão na Espanha que o Vasco venceu em 1947 e leva o nome da "filha" que decidiu colocar no colo o goleiro injustiçado pelo Brasil. Teresa Borba e seus amigos deram outro sentido aos últimos anos da vida de Barbosa.
A história que só ela conhece, o “neguinho”, como se chamavam carinhosamente, que só ela viu de perto, e muitos causos divertidos, curiosos e surpreendentes você vai conhecer no relato emocionado de Teresa. Nesta quinta, o Brasil começa a escrever uma nova história, que pode até apagar a decepção da final de 1950. Mas Barbosa não pensaria assim.
- Ele nunca foi triste. Essa cruz ele jamais carregou. Ele dizia: “A única cruz que carrego no peito é a cruz de malta.”
O início de uma amizade
Vim morar em Praia Grande em 1991. Logo depois, Barbosa também chegou por aqui e ele gostava de vir tomar uma bebida na minha barraca na Praia de Ocean. Ele chamava de birinight, que era um drink com (cachaça) 51 e um Martini. E uma vez meu marido, que é vascaíno louco, o reconheceu. Quando perguntou se ele era o goleiro do Vasco, nossa, os olhos dele brilharam, era impressionante. Ele estava tão acostumado a responder sobre 1950 que quando falou de Vasco percebi na hora a felicidade dele. Aí deitou a contar história, falou do Expresso da Vitória, do título sul-americano de 1948 e brincou comigo: disse que o troféu pelo qual ele era mais apaixonado tinha o meu nome, o Teresa Herrera.
Do Rio para Praia Grande
A irmã da esposa dele, a dona Clotilde, morava em Praia Grande, e quando o Barbosa passou por dificuldades financeiras a irmã o convidou para morar em Praia Grande. Como o Barbosa tinha perdido tudo na loja de pescas que tinha em Ramos, já estava aposentado e reclamava que muita gente não parava de aporrinhá-lo, resolveu vender a casa e veio para Praia Grande, onde vivia no anonimato. Estava morando com a cunhada e a Clotilde.
A perda da mulher
A Clotilde ficou doente. Ela estava com câncer e ele foi gastando dinheiro, gastando muito com remédios, lembro que deu R$ 14 mil para uma coisa do tratamento, eram remédios muito caros. E um dia, nunca me esqueço, cheguei na casa deles e encontrei meu neguinho triste. Perguntei o que havia acontecido. Ele disse: “Clotilde foi embora.” Nunca o vi triste por nada, nem por causa de comentários da Copa de 1950, nada. Ele viveu 56 anos ao lado da Clotilde. Ela se foi no dia 23 de maio de 1997. Ele se apagou, e o pior ainda estava por vir. O sobrinho dele e a cunhada resolveram vender o apartamento. Resultado: ele ficaria sem casa para morar. Barbosa me disse que tinha 10 dias para desocupar o apartamento. Falei para ele vir para minha casa, ficar num quarto enquanto não arrumasse nada. Ele veio, mas minha casa fica a 15 minutos da praia e precisava atravessar uma avenida muito movimentada para ele ir até a praia caminhar, que era o que gostava. Ele dizia que não queria me dar trabalho e só queria um canto com quarto e cozinha. Eu dizia para ele que Deus ia dar um jeito. Aí pintou um repórter do "Jornal do Brasil", que ficou sabendo da história e publicou matéria sobre a situação do Barbosa.
A ajuda de Eurico
O Vasco queria fazer uma festa para homenagear os campeões de 1948, do título sul-americano. O Eurico Miranda ligou para minha casa, eu atendi e ele queria falar com o Barbosa. Dei o telefone, conversaram, deram risadas, e ele convidou Barbosa para vir ao Rio. Ele me perguntou, eu disse: “Vamos lá, neguinho.” E ele dizia sempre: “Veja lá o que você vai aprontar!” Então fomos ao jogo, teve a festa, fomos muito bem tratados e no dia seguinte conversamos com o Eurico e eu entrei no assunto sobre o apartamento dele, que ele tinha ficado sem casa. Ele disse que ia ajudar, para que eu visse um apartamento em Praia Grande, que ajudaria. O Barbosa chegou para mim e disse: “Neguinha, você sabe que filho feio não tem pai, mas quando filho é bonito tem um monte de pai.” Eu entendi o que ele quis dizer. Quando se tem um bem, sempre aparece alguém da família querendo aproveitar, infelizmente às vezes é assim. Então, em vez do apartamento, ele preferia que o Eurico enviasse dinheiro para ele se sustentar todo mês. E assim foi feito, alugamos um apartamento para ele.
O anjo negro palestrante
Ele me ensinou muita coisa, era como se fosse não, ele já era parte da família, um anjo negro que apareceu na minha vida. Depois, para procurar alguma atividade que lhe desse prazer, dei a ideia de ele fazer palestras. E ele adorou. Foi na USP falar com alunos de jornalismo, recebeu estagiário para fazer entrevistas, íamos para tudo que é canto. E ele falava sem papel, sem nada anotado. Contava as histórias do Vasco, as glórias e eu sempre ali o acompanhando. Ele tinha quebrado a perna e por isso não foi para a Copa em 1954, então tinha dificuldade para andar e eu ia sempre com ele. Além de jornalistas, palestrava para cursos de geografia, contava das viagens pelo mundo. Adorava a nova mentalidade que conheceu de jornalistas, porque ele tinha impressão terrível, de jornalismo marrom, daquela coisa que fizeram em 1950, de colocar o Brasil como campeões do mundo um dia antes do jogo. Era uma nova geração e ele começou a ver o lado mais humano dos jornalistas. A gente recebia as pessoas na minha casa, no quiosque. Ele adorava.
Histórias de Barbosa
Ele contava que na Alemanha, uma vez, uma mulher pediu para passar mão no braço dele para ver se não saía tinta. Era uma loura que nunca tinha visto um negro na vida. Outra que ele contava era que ficava até tarde no paredão em São Januário. Todos saíam para curtir, e ele ficava lá até três, quatro horas depois. Era muito alegre, sorridente, estava sempre rindo.
A verdadeira cruz
Ele nunca carregou essa coisa. As pessoas podem ter crucificado, mas não carregou isso. Dizia: “A única cruz que carrego na minha vida e na minha pele é a cruz de malta”, o que é bem diferente da cruz do calvário. Hoje, carrego essa cruz por ele. Divulgo e defendo a memória dele aonde vou. Outro dia fui numa homenagem a ele em Musambinho, interior de Minas. Culparam tanto ele, tanto ele, e Barbosa nunca abriu a boca. Ele nunca apontou para ninguém e eu sei muito bem das histórias. Tem fulano que passou a noite na esbórnia, mas ele nunca deu nomes, nunca apontou. Segurou a onda sozinho, sozinho! Devemos muito respeito ao Barbosa.
O pressentimento
Além daquela coisa toda de política que cercou aquela final, candidato vindo, tirando foto, tudo, ele me contava, aliás, que jogaram com fome, com sono, mas uma coisa chamou a atenção dele e ninguém reparou. Quando colocou o pé no campo, olhou para cima e viu uma bandeira do Brasil de ponta a cabeça. Ninguém reparou isso. Ele disse que era um péssimo sinal. Ele me contou isso numa das cervejas que a gente tomava nas segundas, quando sentávamos e conversávamos em casa, com intimidade.
O último aniversário
Todo ano eu fazia um bolinho para ele. Parece que Deus prepara a gente para tudo. Quando ele foi completar 79 anos, eu disse: “Vou fazer uma festa de arromba para você, meu neguinho.” Ele falou que eu já ia aprontar com ele. Aí chamei todo mundo para o quiosque, comprei toalha de futebol, do Vasco, uma caixa de uva verde, que ele adorava, fiz tudo do jeito que ele gostava. Meu marido foi lá buscá-lo. Barbosa tinha mania de olhar para o céu para agradecer alguma coisa. Ele chegou, juntou as mãos e olhou para cima. Ele agradeceu de felicidade. Ele curtiu muito. Não tinha o que dar de presente para ele, então decidi dar um troféu onde estava escrito “campeão da vida”. Ele levantou o troféu e disse: “Esse é o melhor presente da minha vida, é só meu, não é de mais 10.” Ele ficou muito emocionado. “Neguinha, se eu morresse hoje, morreria o mais feliz do mundo.” Como ia imaginar que uma semana e pouco depois ele ia embora? Ele me chamava de filha e de neguinha. Antes de morrer, ele disse: “Voce é a filha que eu não tive, acho que já tivemos outra vida juntos.”
El Negro gato
Ele não caiu de paraquedas na seleção. Ele sabia que tinha que ser o melhor e era magistral. Tinha o maior orgulho de dizer que era o único goleiro que havia defendido quatro pênaltis num jogo, era chamado de El Negro gato pela imprensa de fora, hombre elástico. Ele dizia que perdeu muito tempo da vida treinando para chegar aonde chegou.
Justiça para Parreira
Uma coisa que o deixou furioso uma época foi aquela história de que o Parreira o vetou para ir à Granja Comary, em 1994. Ele voltou a falar mal dos jornalistas, achou uma sacanagem. O que aconteceu é que ele estava gravando para a BBC, de Londres, e pediram para fazer uma foto com o Taffarel. Ele aceitou, mas aí o Zagallo e o Parreira o chamaram e disseram: “Barbosa, faz o que você achar que deve fazer, mas se fosse você pensava: se der qualquer zebra, vão cair em cima de você de novo.” Ele disse que não tinha pensado nisso. Foi um conselho de amigo. Ele ficou muito chateado quando publicaram que ele foi vetado pelo Parreira.
O gol de Gigghia
Ele me falou que, na hora do chute, ele fez o certo e deu errado, e o Gigghia fez o errado e deu certo. “Quando me abaixei, achei que a bola não tinha entrado. Mas percebi pelo silêncio, aquele peso do silêncio, aí estremeci, tive vontade de fazer um buraco e me enterrar.”
Aposentadoria
Barbosa tinha aposentadoria de cachaça, como ele dizia. Recebia da Suderj R$ 86, o salário minímo era quase R$ 200. Aí fui até o Rio com ele ver isso. Conseguimos aumentar a renda dele. Depois, ele passou a ficar do lado da banca de jornal e me disse que tinha virado corretor zoológico. Com aquele jeitinho dele, todo elegante, esguio: “É que é mais bonito falar corretor zoológico do que anotador do jogo do bicho, né?” Não era grande coisa que ele ganhava, mas aproveitava. Chegava de manhã, lia muito tudo e ainda, de lambuja, como dizia, fazia o jogo do bicho. Mesmo nas palestras, a gente cobrava muito pouco. Foi mais para tirá-lo da ansiedade dele, depois que Clotilde foi embora. Tentei achar mil coisas para ver o que ele gostava. Ele se interessou pela palestra. Era R$ 200, R$ 300, estava se sentindo gente de novo, pegava avião, pedia logo um uisqueznho e nos aeroportos as pessoas o reconheciam, principalmente os gringos. O chamavam de “mestre”, “professor”.
De 1950 para 2014
Ele faleceu depois de ter um AVC, dois infartos, se recuperar, mas depois ter falência múltipla de órgãos. Nessa Copa não tem como não pensar nele. Estou num frisson danado. Acho que ele estaria muito feliz com tudo isso, acho que iria querer ver jogo. Um jornalista me perguntou se ele se sentiria vingado. Mas esse sentimento não combinava com ele.