No início de 2020, bati um papo com Dorival Júnior sobre a formação do encantador Santos de 10 anos atrás. Campeão paulista e da Copa do Brasil com 111 gols em 34 jogos nos dois torneios somados, média impressionante de 3,26.
Nesta paralisação do futebol pela pandemia da covid-19, pedi autorização a Dorival para adaptar o conteúdo daquela conversa a uma entrevista e, assim, iniciar uma série sobre equipes que marcaram época neste início de século.
Com a gentil permissão do atual técnico do Athletico, eis o resultado daquele papo sobre a montagem de um Santos que fez brilhar os olhos de quem ama futebol.
Dorival, você foi contratado pelo Santos no fim de 2009, certo?
– Isso, eu estava saindo do Vasco. Aliás, olha só como foi: eu estava acertando com o Vasco no fim de 2008. Fui a um restaurante com a diretoria e disse: "Para a gente dar um ponto final nessa situação, se vocês chegarem nisso aqui, está fechado". Levantei e fui ao banheiro. E tocou meu celular. Era o Marcelo Teixeira (então presidente do Santos): "Sei que você está acertando com o Vasco, mas abre mão e venha que eu dobro tudo. Vamos fazer um baita time aqui". Eu respondi: "Não faria isso de jeito algum com o senhor, então não vou fazer com eles. Se eles tiverem qualquer porém, eu me levanto, vou embora e acertamos. Mas, se eles aceitarem, eu vou ficar". E acabei acertando com o Vasco, e um ano depois indo para o Santos.
Acho que o destino ajudou, não? O Santos de 2009 teve problemas de várias naturezas, e quando você chegou, um ano depois, Neymar e Ganso já faziam parte do grupo.
– Havia uma incerteza muito grande quando cheguei. Eles queriam reformular completamente, diziam que não conseguiriam nada com aquele time, e eu pedi calma porque tínhamos dois jogadores que ninguém tinha igual. Só que um eles chamavam de filé de borboleta (Neymar) e outro diziam que era mais lento que o Ademir da Guia (Ganso). Só que tanto o Ademir como o Paulo são dois gênios dos gramados. Eu falei que montaria o time em cima do Paulo Henrique e do Neymar. E começamos a esboçar.
– Alguns estavam se recuperando de lesão, como o Edu Dracena, que foi muito importante, e o Pará. Tínhamos quatro goleiros: o Fábio Costa acabou saindo, o Felipe jogou o Paulista, o Rafael entrou depois, na Copa do Brasil, e o Vladimir. Fomos buscar o Durval, que foi a principal contratação, nos deu uma sustentação muito grande. Trouxemos o Maranhão, do Guarani, e veio junto o Rodriguinho. O Bruno Rodrigo, da Portuguesa. Para a zaga eu queria o Emerson, que estava no Avaí. Canhoto, alto, de boa saída de jogo. Mas não veio. Buscamos o Alex Sandro na reserva do Athletico-PR, o Arouca, no São Paulo, numa troca com o Rodrigo Souto, que tinha o salário muito alto e a diretoria não queria que ele ficasse por isso.
Você obviamente já conhecia Neymar e Ganso, e sabia do potencial de ambos, tanto que iria montar o time em cima deles. Mas o que você imaginava era muito diferente do que você constatou em relação ao que eles poderiam fazer?
– Muito grande a diferença do que eu imaginava para o que vi logo no primeiro treinamento. Nós colocamos bola já nos primeiros exercícios. Para acelerar o processo, separei o time por 20 minutos. Depois, reuni o pessoal embaixo daquela primeira mangueira ao lado do muro de entrada do CT, e falei: "Fizemos só 20 minutos e a impressão que vocês deixaram é de uma equipe que vai marcar época no Santos. A bola nem saiu pelas laterais, isso mostra a qualidade dessa equipe". Era uma molecada, né? Eles ouviram, mas não deram importância, não acreditaram. E, de repente, as coisas foram acontecendo.
E a chegada do Robinho?
– O Robinho era o detalhe que faltava em equilíbrio, confiança. Sua chegada mostrou que eles podiam formar um time diferente mesmo, deu outro status, um peso maior, ainda que sem ele o time já tivesse feito grandes jogos. Contra o Corinthians, na Vila, um jogo fantástico, um toque só na bola. Aquele em que a bola parou e o Neymar deu um chapéu no Chicão (assista no vídeo abaixo). Era um time muito solidário, esse era o principal aspecto. Nós treinávamos muito um, dois toques na bola até o último terço. Dali para frente eles tinham toda liberdade, e era impressionante o que eles faziam com um toque só na bola.
Você não tinha um grande marcador no meio-campo, o Arouca era o primeiro volante, então era necessário segurar os laterais para ter equilíbrio defensivo?
– Exatamente, o próprio Arouca estava a todo momento dentro da área. Ora ele vinha por trás, ora o Marquinhos, ora o Wesley, todos infiltravam. O Arouca participou de muitas jogadas de gol.
Os jogadores se procuravam muito, não é? Talvez isso também explique essa flutuação de fora para dentro, para onde estava o Ganso, uma espécie de núcleo ofensivo?
– Exatamente. Tudo girava num cara que tinha uma função muito importante, o último atacante. Tínhamos o André, o Zé Love e o Marcel. Eles faziam o simples, a parede, nunca davam a referência para os zagueiros. Eles flutuavam entre a última e a penúltima linhas de marcação do adversário. Saíam para jogar e depois estavam dentro da área para completar as jogadas. Quando o time estava cansado, entrávamos com o Madson e o Maikon Leite. O André fazia o pivô e era nosso principal tomador de bolas porque começávamos a marcar no campo ofensivo. Esse foi um ponto muito positivo.
Outra característica fundamental essa? Num time sem grandes marcadores, roubar a bola no campo de ataque é mais seguro?
– O quanto antes. Nos trabalhos nós dávamos oito segundos para retomar a bola. Se não conseguisse, então recompunha. O número de retomadas era muito grande. Por isso vivíamos no campo ofensivo.
E tinha gol, Dorival. Há muitos times de bom futebol que não transformam a superioridade em gols. Aquela equipe fazia muitos. Por quê?
– Batíamos muito na tecla de que essa era a maneira de respeitar o adversário. Continuar interessado no jogo, pressionando, querendo gol. E o time foi tomando gosto por isso, sentindo prazer no gol, em criar. Foram vários resultados de 3, 4, 5, teve 8, 9, 10. Era um time que, com todas as individualidades, era solidário e jogava com um toque na bola. Um não queria aparecer mais do que o outro, o ambiente era impressionante. Não tinha cara feia.
Mas houve momentos de indisciplina, não? Eram jogadores muito jovens, como era tentar encontrar o equilíbrio entre essa alegria toda e um certo deslumbramento?
– Não havia excessos ou atitudes desnecessárias. Uma coisa muito importante nos times: quando acaba o almoço ou o jantar e o elenco fica na mesa conversando. Eles ficavam uma hora, uma hora e meia além do horário. Brincando, conversando, e aquilo refletia o dia a dia da equipe. Mostrava a aproximação, o respeito. Era mais fácil para se cobrarem em campo, buscar o limite de cada um. Por isso, ninguém aceitava parar depois de um gol. Tínhamos um grande potencial de contra-ataque, mas era um fator esporádico. Aquele time desconhecia o que era contra-atacar porque estava, na grande maioria do tempo, no campo ofensivo.
Principalmente no Paulista, houve um jogador bem discreto, mas que me parece ter sido taticamente fundamental: o Marquinhos. Qual era o papel dele no meio-campo?
– O Marquinhos, como um segundo volante, teve muita importância. Jogava com um toque só, era muito inteligente, uma leitura anterior à jogada. A gente só pedia movimentação porque a bola iria chegar aos atacantes, vinda do Arouca, do Wesley, principalmente do Marquinhos e do Ganso. E depois com o Robinho, que encontrou um espaço para ser mais armador do que definidor. E ele é inteligentíssimo para jogar. Tínhamos certa vulnerabilidade em alguns momentos, muito mais por nossa agressividade do que pela condição criada pelo adversário. A ambição de fazer gol a todo momento impressionava.
Aquele Santos não conhecia o "saber sofrer", não é? Quem sofria eram os outros?
– Aquela equipe fez o Brasil todinho dançar. Em qualquer lugar, descíamos do avião, havia três caras brincando, fazendo uma dancinha. Na chegada ao hotel, também. Isso criou uma ligação muito próxima com o que é o futebol brasileiro, a genialidade, o improviso, a dança. Sinceramente, essa equipe tinha a essência do futebol brasileiro. O futebol sul-americano ensinou o mundo a atacar. Nunca foi de defesa, de espera.
– Não me importava se o jogo terminasse 5 a 2. Nas entrevistas questionavam os dois gols sofridos, e eu dizia que, se continuasse fazendo cinco, não tinha problema. Sempre houve uma desconfiança com aquele time. Primeiro porque ganhávamos de times menores. Depois queriam ver na hora das decisões. Depois na Copa do Brasil. E a molecada não estava nem aí. O respeito pelo adversário era muito grande, marcávamos todo mundo igual, por isso fizemos tantos gols.
Você se lembra de orientações dadas ao Ganso e ao Neymar, ainda muito jovens – tinham 20 e 18 anos, respectivamente –, que tenham sido importantes para o crescimento deles?
– O Paulo caía muito pelos lados. Eu falei que assim chegariam três ou quatro bolas a cada 10 minutos. "Se você estiver centralizado, passarão pelo menos 15 bolas em 10 minutos, e a tendência dela chegar ao gol adversário aumenta consideravelmente, você não acha?". Falei isso a partir do segundo ou terceiro jogo, quando já era possível ter mais observações individuais. E comecei a mostrar. Num trabalho coletivo, eu parava o lance no canto e falava: "Quais são suas opções? O que você vai fazer? Vai ter que jogar para trás, pro lado, talvez uma combinação, mas qual é a tendência de fazer uma jogada aguda? Agora, vem um pouquinho mais pra dentro. Faz a bola passar por aqui, libera rapidamente que ela vai cair no seu pé e você vai estar de frente para o gol, em condição de definir ou botar alguém de frente para o goleiro". Ele começou a perceber isso.
– E o Neymar vinha buscar a bola atrás do meio-campo e queria começar a fintar a partir dali. Começamos a mostrar que o importante seria ele ter esse arranque no terço final, quando a bola chegasse até ele. Aí ele entraria na área, estaria protegido, qualquer lance seria gol ou pênalti. Até ali, que ele fosse o mais simples possível, e no último terço fizesse o que quisesse ou imaginasse.