"Eu sou filho de pais semianalfabetos. Não estão mais aqui, mas eram pessoas super do bem, dóceis. Eu queria muito ter estudado. Eu era muito bom em matemática, meu sonho era ser engenheiro eletrônico, mais até do que jogar futebol. E eu não pude fazer essas coisas. Mas vi no futebol uma grande oportunidade de ser alguém e encarei, fui até o final.
Voltemos a 1991.
Nós tínhamos uma final entre Vasco e Flamengo dos juniores. Um ano antes de eu aparecer no profissional. Como eu sempre fui falante, me botaram para ir pedir ao diretor da base chuteiras, porque alguns jogadores não tinham.
Eu fui até o diretor, e ele disse exatamente essa frase:
- Quem não tiver chuteira não joga.
Seis meses depois eu estava no profissional. E esse mesmo diretor, depois da minha estreia, veio dizer que eu era tratado como uma joia nas categorias de base. Porque do filho feio ninguém quer ser o pai. Do filho bonito as pessoas aparecem. Isso revolta, te magoa. Você tem 19 anos, mais difícil você absorver isso. A tendência é você ir para o embate, se rebelar.
Entrar em campo para jogar era a coisa mais importante do mundo, eu conseguia provar para todo mundo que estavam enganados a meu respeito só com o futebol. Eu me transformava de fato.
Um ano animal! Edmundo revela bastidores da conquista do Brasileiro de 97
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O retorno para casa
Eu voltei ao Vasco em 1996. Estava no Corinthians. Alguém fez matéria em São Paulo dizendo que o Corinthians ia me dispensar, e não era verdade. Nessa mesma noite o Eurico me ligou perguntando como estava minha situação e se eu queria retornar ao Vasco. Conversei, expliquei que meu passe era do Flamengo. Ele falou:
- Se você quiser, eu dou um pulo em São Paulo amanhã, a gente conversa, e com o Flamengo eu me acerto.
E assim aconteceu.
O Vasco era um time em formação. Chegaram muitos jogadores veteranos, como Toninho, Ranielli, Macedo. Chegaram jovens como Leonardo e Juninho. Pedrinho e Felipe ainda não tinham subido. Foi um ano morno, não aconteceu nada.
Quando terminou o ano o Eurico me chamou e me perguntou: “O que você achou?”. O Felipe e o Pedrinho já estavam treinando, o Leonardo e o Juninho também. Tinha chegado o Ramon, que também era novo. Falei para ele: “Nosso time é muito novo. Falta uma espinha dorsal, uma experiência.” E ele foi buscar o Válber – na teoria era para jogar no meio -, Mauro Galvão e Evair.
E aí o time deslanchou. Foram aparecendo os fenômenos.
Todo mundo sabe o problema maior que tive, que foi o acidente em 1995. Tudo o que eu precisava era de carinho, de afago, e o Vasco me abraçou. Apesar da minha irritação, que o time não andava, e eu ficava muito irritado em 1996. O que era uma coisa que pesava para mim, porque tinha saído em 1993 depois de um ano maravilhoso em 1992. Muitas conquistas em 1993 e 1994, a frustração e os problemas de 1995.
Eu não queria mais um ano assim. Foi um ano de construção. Quando cheguei a diretoria deixou muito claro que era um ano de construção, não tinha aquela obrigação de performar. A gente sabia que era um time em formação para a temporada seguinte.
Eu sou um pouco mais velho e já acompanhava o Felipe e o Pedrinho no futebol de salão. Mesmo depois que estava no campo, treinando no profissional, sempre que podia eu ia lá no ginásio dar uma olhada no futsal. Eu já os conhecia. Quando eles subiram, os dois são extremamente educados, tímidos. Eu os recebi muito bem, já brincava, ria, mas eles sempre muito tímidos.
Eu pedia muito ao Lopes era que deixasse os meninos, desse liberdade para os meninos jogarem bola. Todo mundo os acolheu muito bem, e eles foram sensacionais naquele ano.
Convivo com o Felipe até hoje, é um moleque sensacional. Mas um pouco mais parecido comigo: revoltado com o sistema, um cara à frente do seu tempo. Querendo mudanças que você não consegue fazer, e você se revolta e se rebela. Mais ou menos o que aconteceu comigo. Você inexiste até uma certa idade, e depois dessa idade você tem que ser exemplo.
Isso aconteceu comigo. Acho injusto. Porque você tem que dar aquilo que você recebe. Os clubes preparam muito bem o atleta e esquecem do homem. Tem um ser humano para ser cuidado. É como se fosse uma mercadoria que não serve e joga fora. Você não está nem aí se esse cara vai ter futuro na vida. Eu vi muita gente que passou por 10, 12, 15 anos, dedicou sua vida a um clube.
Meu irmão é mais uma vítima desse sistema. Meu irmão se envolveu com drogas muito cedo, muito criança ainda, com 13, 14 anos. E meus pais sofriam muito com isso. Com 19, 20 anos, quando me tornei profissional, virei pai dos meus pais, outra coisa muito ruim. Muito ruim. Porque culturalmente as pessoas acham que você tem dinheiro e você manda, e não deve ser. Não é legal. Mas aconteceu.
Eu tinha um pouco mais de cultura, de conhecimento, de vivência. Meu mundo se abriu, e eu tinha obrigação de tirar o meu irmão daquela vida. De fato, sempre que eu podia eu estava com ele. Muitas vezes ele estava usando drogas no morro, e eu tinha que subir o morro para busca-lo, leva-lo para casa, dar banho, dar leite, porque o leite corta efeito da droga. Mas eu tinha meus filhos, minha família, minha profissão, e isso tinha que continuar, né? Afinal de contas, o dinheiro era proveniente dessas coisas.
Até que em 2001, 2002, eu estava no Japão e recebi a notícia de que ele tinha sido assassinado. Me senti muito culpado porque não pude estar do lado, evitar. Mas era uma pessoa especial. Melhor irmão do mundo. Com todos esses problemas, eu tenho muita saudade dele.
O ano mágico
Individualmente, 1997 foi o melhor ano da minha carreira. A palavra que eu gosto de usar é confiança. Tinha confiança de todo mundo, do presidente ao porteiro. Eu chutava de onde eu achava que tinha que chutar, eu driblava quando achava que tinha que driblar. Eu tinha jogado com o Evair no Palmeiras, e ele era a grande estrela lá, eu jogava do lado do campo. Em 1997, isso se inverteu. Era ele que me servia, e eu fui o artilheiro.
O Lopes todo jogo tirava o Evair, seja para dar mais velocidade no ataque ou para botar um volante e fechar o time. E o Evair começou a se irritar. Teve um jogo contra o Coritiba, que fiz os três gols, e levanta a placa número 9. Falei: “Deixa que eu saio”. Tirei a faixa de capitão e botei nele. E fui direto no Lopes:
- Professor, a gente vai perder o cara. Todo jogo tu tira ele. Ele está ficando puto.
Essa sensibilidade que se faz necessária em alguns momentos o Lopes não teve naquela ocasião. Tanto que a gente foi campeão no domingo, e o Evair nem está na foto de campeão na segunda. No domingo mesmo ele foi embora. Alegou problemas financeiros. Acabou indo para a Portuguesa.
O Eurico, por exemplo. Eu não gostava do que ele fazia, mas ele reunia os jogadores e falava: “Domingo tem jogo importante, não quero que ninguém saia à noite. Só o Edmundo pode sair.“ Porra, eu? Ele jogava para mim uma reponsabilidade e eu me via na obrigação de não fazer. Embora gostasse. Não posso reclamar de nada internamente. Tive tudo. Todas as ajudas possíveis e imagináveis para ter aquele ano abençoado.
Eu já fui dormir machucado e acordar bom, porque o Pai Santana passou a noite toda cuidando de mim.
Ele fazia o contraste de água quente e fria, massagem. Botava uns vibradores na mão. Ele de fato conseguia curar, não sei se través da reza ou de tratamento. Mas eu sei que com ele eu sabia que ia jogar. Ele de fato cuidava de mim.
Mas o Brasileiro começa muito mal para mim individualmente. A gente perde para o Corinthians por 2 a 1, eu faço o gol, mas sou expulso. Aí eu cumpro um jogo, volto contra o América-RN, sou expulso de novo. A história do paraíba.
A gente é jovem, fala para depois pensar. Aqui no Rio todo mundo que nasceu da Bahia para cima a gente chama de paraíba. Não é forma pejorativa. É forma até carinhosa de chamar. Em São Paulo é baiano. Eu quis dizer, fui mal interpretado, cobrado, processado. Foi um escarcéu na minha vida.
A mudança radical mesmo foi no 6 a 0 contra o União São João. Porque o Dodô estava com 10 gols, e eu com três, quatro. Estava muito atrás na artilharia. Quando faço os seis gols, me aproximo, vejo que é legal, gostoso fazer gol. Acho que passo ele nesse jogo e depois não perco mais a artilharia.
Lembro muita coisa daquele jogo. Eu ficava no quarto com o Luizinho e falava: “Estou com preguiça hoje. Mas já estamos aqui, né? Vamos jogar”. Quando acabou o primeiro tempo, foi 1 a 0 ou 2 a 0. Eu disse: “Luiz, vou sair”. Aí ele: “Não, o time precisa de você.” Aí eu faço os outros gols e ele vem: “Pô, que inhaca é essa que faz um monte de gols?”.
Chegou um momento do campeonato que o Juninho vinha sendo convocado para a Seleção, mas o rendimento dele no Vasco caiu muito. Todo mundo recebeu o pagamento numa sexta-feira, e o Juninho, não. Quando chegou no sábado, ele veio falar comigo. Não tinha entendido por quê, liguei para o Eurico. Ele chegou na concentração à noite:
- Não, se não voltar a jogar bem no Vasco não vou pagar.
Respondi:
- Mas a gente precisa do cara.
- Dane-se.
Subi, fui no quarto do Juninho, peguei meu cheque, perguntei quanto ele ganhava na época e fiz um cheque para ele:
- Pode depositar que vou receber do Eurico. Mas joga e arrebenta amanhã, que a gente precisa de você.
Desci de novo, porque depois do lanchee a gente ficava batendo papo no hotel. Dei meu cheque ao Eurico:
- Paguei. Segunda-feira você deposita na minha conta. Agora não é mais com ele, é comigo.
Eis que o Juninho jogou para cacete no domingo, ganhamos. Na segunda-feira ele depositou o pagamento do Juninho, e ele devolveu meu cheque.
A gente agora está em lados diferentes, mas só por idealismo. O Eurico é uma pessoa que eu gosto muito, admiro muito, respeito muito. Ele foi, acho, o maior dirigente do futebol brasileiro quando usado positivamente.
Ele não deixava escapar nada em termos de bastidores. Dificilmente o Vasco seria prejudicado. Só tenho coisas positivas a falar dele.
E tenho o Antonio Lopes como um pai. Foi quem me subiu para o profissional. Ele só não tinha grife. Ele era maravilhoso como técnico, sabia muito. O que os treinadores tops fazem hoje, ele fazia lá em 1997. Era marcar pressão na saída da bola para tenta roubar lá na frente e fazer o gol, com participação de todos. E se não conseguisse, voltava todo mundo, marcava por setor. É um cara trabalhador demais. Trabalhava muito a bola parada, com obrigações. Era um estudioso. Tenho certeza de que se fosse bonitinho, de olho claro, ia ter dez vezes mais valor.
Eu consegui amolecer um pouquinho aquele coração duro. Ele como delegado quer a disciplina no chicote. Mas isso não cabe mais nos dias de hoje. Eu consegui fazer ele entender. Por exemplo, fazia churrasco na minha casa. Ia todo mundo, e ele pedia para não liberar cerveja enquanto ele estivesse lá.
Era aquele almoço, churrasco, grupo de pagode, sem cerveja. Almoçava, dava 14h, a comissão técnica toda ia embora, e a galera caía na cerveja. Era o jeito dele. Ele sabia que ia ter, mas não queria participar, ser conivente. É legal, a gente sempre respeitou. A figura dele era de máximo respeito.
Quem a gente mais sacaneava era o Odvan. Era o mais engraçado. Ele veio de Campos, era meio caipirão. A gente conversava, ria, cada um contava uma história, e ele queria participar. Ele começou a ganhar dinheiro e contou que tinha comprado um sítio em Campos. “Pô, tenho que ser campeão pra pagar meu sitio”. Perguntávamos: “E é legal? Grande?”. E ele: “É tão grande que a piscina é do tamanho da Baía de Guanabara.” Todo mundo riu.
Tem a história do comprovante de residência. Ele contou para o Juninho, que contou para a gente. Chegou numa loja de eletrodomésticos para comprar fogão, geladeira, ar para botar no apartamento quer o Vasco tinha alugado para ele. O cara pediu CPF e comprovante de residência. Dizem que ele tirou uma foto embaixo do prédio e levou.
O Válber... Nós tínhamos uns treinos que fazíamos na praia, íamos no ônibus do Vasco com o Penedo, o motorista do Vasco. Tinha aquela música do Tom Cavalcante, “treinar para quê”, e ele vinha cantando no ônibus fazendo uma versão. Tinha aquela música do Waguinho: “Ficar rico em São Paulo, tô fora, ficar pobre aqui no Rio, tô dentro”. Era muito engraçado. Tinha muita coisa boa. Lembrando essas histórias, eu sinto bastante falta dessa galera.
E então veio o jogo com o Flamengo.
A semana de Vasco x Flamengo é uma semana difícil. Você vai do céu ao inferno muito rápido. A gente tinha uma rivalidade, um embate muito grande com o Junior Baiano. Tinha a passagem para a final envolvida. Quebra de recorde de gols numa só temporada.
Sempre tive uma cerimônia religiosa, um jeito de agir em dia de jogo. Acordar, tomar banho, fazer a barba, passar o mesmo perfume durante 19 anos de carreira, comer, dormir, rezar. E depois me transformar. Eu não falava com ninguém. Nem bom dia nem boa tarde naquelas ultimas quatro horas. Depois da última refeição, eu não falava com ninguém. No máximo respondia sim ou não. Era um ritual.
Eu lembro que uma das coisas que eu fazia no Maracanã era pegar um travesseiro que o Adão, roupeiro, levava, um cobertor. Eu deitava na sala de aquecimento, num canto, para meditar, me concentrar. E aí o Lopes mandou me chamar, porque o Flamengo fez uma mudança. Eu falei: “Me deixa descansar”. E ele: “Não, é importante.” Lembro que me tirou um pouco da minha rotina.
O que o pessoal lembra é daquele jogo, porque as finais foram até certo ponto sem graça. Foram dois 0 a 0, a gente tinha vantagem. Ficou emblemático aquele 4 a 1, o Vasco com um jogador a menos. Foi uma coisa muito marcante, porque o Nelson era um jogador importante, ganhou a posição, foi expulso. A tendência era o Flamengo crescer, e isso não aconteceu. Conseguimos, mesmo com essa dificuldade, ganhar. Foi muito marcante.
Foi o gol mais bonito dos 29 que fiz. O último mesmo. Corto de letra, bato de esquerda. É instinto puro. Eu chuto muito mal com a perna esquerda.
Ganhar do Flamengo, fazer aquele placar, foi como se ganhasse titulo. Ganhar o titulo depois foi só a cereja do bolo.
E veio a final contra o Palmeiras.
Tem o cartão em São Paulo. É uma falta a meu favor, que vou bater rápido, o Roque Junior fica na frente e eu empurro ele. Aí tomo cartão amarelo. Na regra de hoje, não pode ficar na frente, quem deveria tomar era ele. Enfim. O Pai Santana sempre vinha para atender alguém, trazer água, circulava em volta do campo. Não lembro quem foi atendido, e aí ele veio e falou:
- O presidente mandou você ser expulso.
Não entendi nada. Na hora não percebi que tinha tomado o terceiro. Pouco depois eu me atentei que era por isso e aí fiz. A falta é ridícula no Cleber.
Não que eu ache que seja a coisa mais correta do mundo, não. Mas fazia parte do regulamento. Se está no regulamento, por que não se aproveitar disso? O Palmeiras até hoje reclama, mas eu acho que mesmo se eu não jogasse o segundo jogo o Vasco seria campeão.
Fiquei com medo de não jogar. Foi uma semana tensa. Eu treinava e o Lopes me substituía às vezes, botava o Pedrinho. Porque não era certeza de que eu podia jogar. Mas só após o julgamento é que tive a certeza de que poderia jogar. Fiquei muito feliz.
Em casa, com a maioria da nossa torcida, foi um jogo que a gente se arriscou menos, fomos mais ponderados, administramos mais. Era só esperar o tempo passar para comemorar uma trajetória tão vitoriosa que talvez não tivesse tanto valor se não culminasse com o título."
* O depoimento de Edmundo foi organizado a partir de uma entrevista de duas horas com a reportagem do GloboEsporte.com