Próxima de ser votada por conselheiros e sócios do clube, a negociação entre o Vasco e a 777 Partners, empresa que negocia a compra de 70% das ações da futura SAF (Sociedade Anônima do Futebol), está agitando os bastidores. O atual presidente do Cruz-Maltino, Jorge Salgado, foi questionado em uma carta assinada por um grupo formado por seis vice-presidentes sobre o processo. Eles querem uma maior transparência e participação nas discussões.
A carta, divulgada primeiramente pelo 'UOL Esporte', é assinada por Fábio Nogueira (VP de Patrimônio), Marcel Kaskus (VP de Esportes Olímpicos e Paralímpicos e membro do Comitê Consultivo do Futebol), Vítor Roma (VP de Marketing), Maurício Corrêa (VP de Relações Públicas), Horácio Júnior (VP de Responsabilidade Social e História), Rafael Cobo (VP Médico) e o conselheiro Luís Aragão. Todos os citados são aliados de Salgado.
Nela, os dirigentes apontam que desde o princípio das negociações com a 777 Partners houve alertas "sobre a necessidade de maior envolvimento dos vice-presidentes, sobretudo em negociações que envolvam suas áreas".
Eles afirmam que "na reunião com o líder do projeto pela KPMG, realizada na última sexta-feira (28 de junho) em São Januário, ficou claro que negociações-chave transcorreram por meses sem que os VPs tenham tido ciência ou participação nelas, o que torna a posição do clube frágil e arriscada em um processo tão vital para sua história. Entendemos que a empresa contratada está avançando sua atuação sobre competências que não são dela, sem envolvimento das áreas envolvidas e sem conhecimento dos assuntos que discutem".
Diante da atual situação, os vice-presidentes pedem que "o processo, tão decisivo para o clube, seja transparente e tenha participação de forma direta e efetiva na negociação e validação" em oito pontos listados (confira no final da matéria).
Por fim, eles reforçam que são favoráveis à SAF, mas assinalam que estão "preocupados com o resultado do processo, constatamos que a condução das negociações por um grupo muito restrito, sob a justificativa do risco de vazamento de informações sensíveis, levou a um debate empobrecido, arriscado e improdutivo".
No começo de maio, detalhes do contrato de empréstimo-ponte de R$ 70 milhões da 777 Partners, aprovado pelo Conselho Deliberativo do Vasco em 24 de fevereiro, foram divulgados. A oposição do clube considerou alguns pontos do documento como perigosos e decidiu enviar ao presidente do Conselho Deliberativo alguns questionamentos:
- Segundo a oposição, o contrato de empréstimo já estava assinado (16/2) antes da reunião do Conselho Deliberativo (24/2)
- Segundo a oposição, a opção de compra dos jogadores está aplicada à 777 Partners e não ao Genoa, como o vice jurídico Zeca Bulhões explicou na reunião do Conselho Deliberativo em 24/2. O que seria uma violação das normas da Fifa.
- Seriam quase 70 jogadores dados em garantia, e não apenas quatro (há uma lista no contrato).
- O contrato de empréstimo vem adicionado da expressão "Dação em pagamento". Segundo a oposição, o clube pode estar oferecendo as quotas parciais da futura SAF, os jogadores ou qualquer outra coisa em pagamento em caso de vencimento da obrigação.
O advogado especialista em direito desportivo e colunista do Lei em Campo, Martinho Miranda, analisou esses pontos citados.
"Há questões que me soam estranhas. Não consigo compreender por exemplo, porque o clube deu à 777 exclusividade em oferecer proposta de compra. Em negócios comerciais a exclusividade é algo que se dá ao outro contratante na execução do serviço. Jamais na fase de escolha das ofertas. Porque não dar oportunidade a que outros interessados ofereçam propostas que sejam mais vantajosas? O que impede que a diretoria faça isso? Acredito que o processo teria de ser transparente", diz o especialista, que acrescenta:
"Outro ponto que sobressai é a suposta violação às normas desportivas, quando se oferecem em garantia direitos de quase setenta atletas a uma empresa por um empréstimo recebido. Isso aparentemente viola as proibições da FIFA de cessão de direitos econômicos a terceiros alheios à relação esportiva. É também curioso o fato de se ter promovido uma 'cessão fiduciária' desses direitos à 777. A cessão fiduciária é uma transferência de propriedade. Tratar direitos sobre jogadores enquanto propriedade negociável, como se mercadoria fossem, é algo absolutamente incompatível com o ordenamento jus desportivo e porque não dizer, com os tempos atuais".
O Lei em Campo também ouviu Leonardo Rodrigues, sócio e membro do grupo Fuzarca (oposição da atual gestão vascaína), sobre alguns tópicos do acordo entre o clube e a 777 Partners. Ele não descarta que a Justiça seja acionada para "melar" o negócio, mas ressalta que "a prioridade é buscar resolver internamente pelos mecanismos estatutários".
"O que foi descoberto até aqui com acesso apenas a um dos contratos firmados entre o Vasco e a 777 Partners é muito grave. As razões para a falta de transparência e atropelo começam a aparecer, embora fossem intuitivas. O Vasco mentiu, ludibriou seus conselheiros num teatro burlesco. Quanto ir a juízo, não descartamos nenhuma medida que se faça necessária, mas a prioridade é buscar resolver internamente pelos mecanismos estatutários. Para isso encaminhamos um expediente ao Presidente do Conselho Deliberativo, que infelizmente acabou se tornando público. A resposta do Vasco está longe de afastar as irregularidades. Ela as reforça. Confirma que o contrato foi firmado antes de sua aprovação. A inovação de que teria sido assinado sob cláusula suspensiva não convence, seja pela falta de credibilidade da palavra de quem simulou, seja pelo texto do próprio contrato", diz.
"O que essa gestão fala, não se escreve. Basta verificar que a garantia não foi prestada ao Genoa, como afirmado. Fomos de estelionato eleitoral à estelionato institucional. Aliás, o Vasco prestou declaração inverídica na cláusula 5.1.2 ao dizer que já havia obtido as autorizações necessárias. Se verdadeiro fosse o argumento apresentado, o verbo teria sido utilizado em seu tempo futuro (obterá), não passado (obteve). Essa questão viola não só estatuto, mas a lei e o próprio contrato, deixando o Vasco exposto a riscos graves. Dentre eles a possibilidade da 777 Partners solicitar ao Banco a venda ou a execução da conta garantia pelos direitos econômicos de cerca de 70 atletas. Vale lembrar que o contrato outorga procuração com plenos e irrevogáveis poderes para isso, o que não foi discutido e nem aprovado no CD, embora consista em inegável possibilidade de interferência da 777 a caracterizar TPI/TPO", afirma Leonardo.
"Nisso, inclusive, a resposta do Vasco também confirma a irregularidade, pois confessa cessão fiduciária das receitas provenientes das operações envolvendo os atletas relacionados, que é o conceito exato de direito econômico. Enfim, as irregularidades foram confirmadas na resposta inoficiosa do Clube, que seu próprio libelo acusatório. É exigível, portanto, que sejam adotadas as medidas necessárias para saná-las a fim de evitar prejuízos ao Vasco. As pessoas precisam ter responsabilidade e pensar um pouquinho no Vasco, deixar suas vaidades ou objetivos pessoais de lado. Seguir com os vícios será uma temeridade", finaliza.
O Lei em Campo tentou contato com a assessoria do Vasco que até agora não respondeu à reportagem. Caso responda, o conteúdo será atualizado.
Confira a íntegra da carta:
"Reflexões sobre o momento do Vasco
A aprovação da SAF é um dos movimentos mais importantes da história do clube, e será lembrada eternamente, tanto pelos seus benefícios quanto pelas suas falhas. Cabe a nós, dirigentes do clube, tomarmos os cuidados necessários para que o clube com a história mais importante de todo o futebol brasileiro seja capaz de escrever mais um capítulo glorioso de sua trajetória.
Desde o princípio das negociações com a 777 Partners, alertamos sobre a necessidade de maior envolvimento dos Vice-Presidentes, sobretudo em negociações que envolvam suas áreas.
Na reunião com o líder do projeto pela KPMG, realizada na última sexta feira em São Januário, ficou claro que negociações-chave transcorreram por meses sem que os VPs tenham tido ciência ou participação nelas, o que torna a posição do clube frágil e arriscada em um processo tão vital para sua história. Entendemos que a empresa contratada está avançando sua atuação sobre competências que não são dela, sem envolvimento das áreas envolvidas e sem conhecimento dos assuntos que discutem.
As promessas de inclusão dos VPs em momento oportuno nunca se concretizaram, o que se converte em risco para as negociações, que precisam ser conduzidas de maneira eficiente, sob pena de resultar em acordos ruins e potencialmente questionados pelos sócios na Assembleia Geral.
Estes sócios, diga-se, não encontram, no atual estágio das negociações, garantias acerca de seus direitos adquiridos. E eles não são importantes apenas na aprovação da SAF na AGE: são também a principal fonte de receita do clube social a partir da aprovação do acordo com a 777. Falhar com eles significa falhar com o Vasco, com sua história e com o seu futuro, dado o risco real de insolvência, caso os sócios estatutários se afastem do clube.
Reiteramos que uma história de 120 anos não pode ser manchada por erros na condução das negociações. E o sucesso das negociações não é um fruto do acaso, mas do trabalho e do zelo. Por isso, torna-se espantoso que as negociações não levem em consideração o resultado da consultoria que contratamos junto à EY, com a qual o clube gastou quase R$ 200 mil, com o objetivo de propor ideias de carve-out. Se a KPMG se debruça sobre o tema há meses, a consultoria perde o sentido. Sobre esse tema, este grupo de VPs encontra imensa dificuldade de acessar informações fundamentais para o processo de carve-out que se encontra em curso; como folha, receita, custos estimados, investimentos, entre outros. Se os Vice-Presidentes do clube não são envolvidos em temas tão sensíveis para suas áreas, o clube perde força em sua capacidade de fechar um bom deal.
Diante do exposto requeremos que o processo, tão decisivo para o clube, seja transparente e tenha participação de forma direta e efetiva na negociação e validação das seguintes questões:
- Licenciamento de marca
- Vasco Academy
- Direitos adquiridos dos sócios estatutários e receitas de associação
- Legado histórico e exploração dos programas envolvidos (tour, espaço experiencia)
- Colégio Vasco da Gama
- Uso de áreas compartilhadas do clube (esportes além do futebol, instalações físicas)
- Uso compartilhado de áreas meio (marketing, relações públicas, financeiro, jurídico, secretaria)
- Contrato com fornecedor de material esportivo
É fundamental esclarecer que todos somos entusiastas da SAF e, sem exceção, atuantes no apoio operacional e político ao seu processo de aprovação. Tal entusiasmo se materializa no objetivo de garantir o sucesso das negociações, com impactos positivos para o futuro do clube.
Preocupados com o resultado do processo, constatamos que a condução das negociações por um grupo muito restrito, sob a justificativa do risco de vazamento de informações sensíveis, levou a um debate empobrecido, arriscado e improdutivo.
Ainda há tempo para correções de rumos. Mas o momento é agora"