Não é novidade para absolutamente ninguém o tamanho do prestígio de Romário de Souza Faria no Vasco da Gama.
Autor de 313 gols em 402 partidas espalhadas pelos seus 11 anos de clube cruz-maltino, o "Baixinho" era sempre o jogador mais "mimado" pela diretoria carioca. Prova disso eram as viagens de avião rumo às partidas, em que ele era o único a ter as regalias de um voo extremamente confortável.
"São coisas que não existem mais no futebol. Tivemos um jogo contra o Grêmio e estávamos no aeroporto. Quando entramos no avião, passamos por trás. Todo mundo procurando. 'Cadê o Baixinho?' Todo mundo ficou procurando achando que ele estava atrasado porque sempre foi o último a chegar. Nunca foi de horário. Quando foi ver ele estava há um tempão sentado na primeira classe e tomando uma champanhe (risos)", gargalha o zagueiro João Carlos, que atuou no Vasco em 2001/02, em entrevista exclusiva ao ESPN.com.br.
"Ele gostava de andar na janelinha com a Coca-Cola dele lá, tranquilão. Aquilo ficou marcado porque a comissão técnica e todos os jogadores na classe econômica e só ele na primeira classe (risos). Ele tinha muita moral. Sempre que tinha uma primeira classe no avião ele ia lá", continuou o defensor de 35 anos.
Além disso, o camisa 11 era bastante exigente com seus materiais de trabalho.
"Quando ele chegava ao vestiário tinha que estar tudo organizado com a cestinha dele, tesoura atadura e o banquinho. Caso não estivesse ele só olhava e os caras saíam correndo para providenciar. Podia faltar tudo para gente, mas para ele não podia faltar nada (risos)", recordou.
Mas não era só fora de campo que Romário tinha a preferência. Como já era consagrado, o craque deixava a correria para a 'garotada' e preferia esperar a bola lá na frente para dar seus chutes sempre mortais aos goleiros.
"Ele sempre falou para gente: 'eu já treinei demais na minha vida. Agora que sou consagrado, acha que eu vou correr? Que nada. Agora vou deixar para vocês correrem'. Era um cara que observava muito a molecada. Quem ele via que tinha vontade, ele dava muita moral. A gente dava a vida para permanecer por lá. Se ele visse que não estava correndo, ele mandava descer de volta para a base", diz.
E 'ai' de quem não passasse a bola no pé do ex-camisa 11...
"Quando vinha com a bola lá de trás, você poderia ter a melhor opção do mundo para tocar. Mesmo se o Romário tivesse marcado você tinha que dar a bola para ele (risos). Se alguém antecipasse ele, ainda caia na nossa conta (risos). Me falaram para mudar de jogada. Mas eu respondia: 'eu estou subindo agora, se for fazer diferente e errar, ai que não jogo mais'", rememora João Carlos.
E apesar de sempre dar abertura para os companheiros brincarem com ele, os jogadores preferiam não se meterem com a fera, que teve até estátua construída atrás do gol de São Januário, em alusão à comemoração de seu milésimo tento na carreira.
"O Romário, com o jeito dele, o pessoal tinha medo de chegar perto para zoar. No treino ele tratava a gente muito bem e sempre brincava com a molecada. Mesmo quando ele errava no treino de dois toques, ele mandava a gente ir para a roda de bobo: 'vai lá moleque, tu que errou' (risos)", comenta.
"Era um cara fora de série. Chegava atrasado sempre. Curioso que o atacante do time reserva sempre ficava puto porque ele chegava com uns dez minutos de coletivo. O cara que estava jogando no time titular ia para o reserva e o que estava no reserva precisava sair (risos). Ele já vinha no trotezinho e já tirava quem estava no lugar dele. Era muito engraçado e era rotina no Vasco. Era um fenômeno", completa João, que acertou sua ida para o Madureira, onde voltará a jogar o Campeonato Carioca em 2018.
Mandava fora de campo, decidia dentro dele
Isso era comum quando Romário estava em campo pelo time do Vasco. Não era raro o craque ex-PSV, Flamengo, Barcelona, Valencia, Fluminense e seleção brasileira, inclusive, ordenar que o treinador realizasse substituições que julgava importantes ao time.
Contra a Portuguesa, em uma partida no Canindé, ele literalmente decidiu dentro e fora de campo.
"Estávamos perdendo de 3 a 0, com 25 minutos. O Ricardo Oliveira [hoje atacante do Santos] destruindo, e o Romário queria ser artilheiro. Ele ficou revoltado no vestiário e mandou tirar o Léo Lima e o Ricardo Bóvio do time. Voltamos para o segundo tempo e ele meteu 3 gols e empatou. Ele conseguiu mudar a escalação e empatar o jogo", lembra João Carlos, sem deixar de recordar o tento do desempate da "Lusa".
"Aos 45 do segundo tempo, o Elson, volante gigante, veio entre mim e o Géder e nos atropelou. Pulou mais do que a gente e fez o gol da vitória deles por 5 a 4", lamenta.
No vestiário, o "Baixinho" estava furioso e deu bronca nos companheiros.
"O Romário chegou revoltado, de uma forma que nunca tinha visto na minha vida. Era difícil jogar mal naquela época, mas eu e o Géder tomamos uma dura inesquecível. Ele tinha conseguido empatar e falou: 'vocês tão de sacanagem'. Foi a primeira e última dura de verdade que ganhei do 'Baixinho' naqueles tempos. Aquele jogo foi bem cruel porque ele queria muito ganhar. Tive que escutar quietinho e ele tinha toda razão", diz.
Ao contrário do que muitos poderiam pensar, o eterno camisa 11 aprimorava sua técnica apurava mesmo já veterano.
"Eu aprendi demais com Romário. A cada dia era uma coisa nova. Ele podia chegar atrasado, mas depois do treino ficava com dois auxiliares cruzando bolas para ele completar de cabeça, de direita, de esquerda, de tudo que é jeito que você pode imaginar. Por isso que ele é o rei da grande e da pequena área. Ele ficava treinado finalização. Não foi um monstro à toa", comenta João Carlos, sem poupar os elogios ao craque, que foi decisivo no tetracampeonato da seleção brasileira na Copa do Mundo dos Estados Unidos.
"Eu lembro de tudo da Copa de 94 e foi o cara que ganhou esse Mundial para a gente. Foi marcante aquilo. Poder jogar ao lado dele era um pouco assustador ali no meio do vestiário. Foi uma experiência fantástica de vida jogar ao lado dele", finaliza.