Um homem uruguaio, formado em biologia e técnico de computação, pegou o telefone e ligou para a sede do Vasco. Procurava por Alexandre Campello, presidente do clube, e queria se candidatar ao cargo de treinador depois da demissão de Ramon.
Dias depois, enviou mensagem a Carlos Augusto Montenegro, no Botafogo. Apresentou-se como treinador de futebol profissional – Paulo Autuori tinha pedido para sair - e com interesse de deixar Montevidéu para ajudar o clube de General Severiano.
Seria só mais uma história de ofertas frustradas no futebol. Mas o autor das mensagens é filho de Alcides Ghiggia, autor do gol do "Maracanazo" na final da Copa do Mundo de 1950 contra o Brasil.
Uruguai e Brasil se enfrentam nesta noite no estádio Centenário, às 20h, em Montevidéu. A seleção brasileira é líder das Eliminatórias com três vitórias em três jogos
Arcadio Ghiggia, de 66 anos, não tem medo de ouvir um "não", muito menos da reconhecida fábrica de mastigar treinadores do futebol brasileiro. Nascido em Roma, na Itália, quando o pai brilhava no time da capital, este simpático senhor uruguaio alimenta o sonho de voltar a trabalhar no esporte que moldou o caráter da família.
Não conseguiu contato com os dirigentes do Vasco e do Botafogo, mas não se importou. Muito menos se inibiu em seguir seu rumo. E prefere fazer sozinho, sem ajuda de empresários.
"Meu pai me ensinou: "nunca abaixe os braços. Me ensinou a sempre sonhar e sempre buscar o que deseja". A vida é uma só. Se me derem dois, três dias para trabalhar, não tenho nenhum problema. Tenho confiança no meu trabalho"
— Arcadio Ghiggia
Arcadio foi aluno de Óscar Tabárez, o Maestro Tabárez, treinador da Celeste desde 2006, no Instituto Universitário Associación Cristiana de Jovenes. No dia da formatura, o pai herói e orgulhoso - "um livro, uma bíblia para mim no futebol" - tirou uma foto. Ghigghia, o pai, chegou a ser técnico do Peñarol no fim dos anos 1970. Deixou o tradicional clube uruguaio depois de poucos jogos, ao saber que a direção conversava com um técnico chileno.
- Ele me dizia: "isso não é para mim, é para você." Ele dizia que eu tinha muito conhecimento do jogo, sabia analisar o adversário e as características dos jogadores, que eu era um estudioso do futebol.
Curiosamente, o início do sonho de colocar um boné à beira do campo começou em Roma. Vizinho de bairro do partido socialista italiano, do ex-presidente Bettino Craxi, ele jogou de defensor e foi treinador do time "Avanti", num campeonato entre siglas políticas de Roma. Recebeu o troféu na sede do partido das mãos de um deputado italiano, com pôster do líder chileno Salvador Allende ao fundo.
O peso do sobrenome
No futebol uruguaio, Arcadio treinou um time das divisões inferiores chamado Fausto Aguillar, depois passou pelo tradicional Nacional, entre 2007 e 2008, e a última experiência foi no River Universitário, um time que disputa competições de universidades. Hoje, coordenador de um centro de computação na capital uruguaia, ele lamenta a falta de oportunidades.
- Tentei buscar equipes, mas o sobrenome parece que me pesa muito. Mas aqui o mercado é muito pequeno. Sempre são os mesmos (treinadores). Tem que abrir – comenta ele, que lembra reflexão de um amigo sobre o mercado uruguaio.
- Cada vez que exportamos um jogador, teríamos que importar um dirigente.
Arcadio teve aulas por dois anos com nomes Martín Lasarte, hoje no Al-Hillal, Gerardo Pelluzo e Sergio Markarián, hoje técnico da seleção da Grécia. Fez curso de capacitação em Punta del Este, com profissionais do Boca Juniors, e outro da federação francesa. Ele vê a chance para treinar uma equipe como recomeço.
- Liguei ao Vasco, tentei falar com o presidente. Mandei mensagem para o senhor Carlos Augusto (Montenegro), não recebi resposta. Ou não leram as mensagens ou pensaram que era um louco. É fácil ir trabalhar na Juventus, no Barcelona, no Flamengo, que têm mais dinheiro e os melhores jogadores. Mas penso em agarrar a uma equipe para poder sofrer e trabalhar – diz Arcadio, que gosta de trabalho de base e se vê capacitado para trabalhar no futebol feminino também.
O esquema 4-3-3 é o de preferência de Arcadio, com variações para o 4-4-2 e 4-2-3-1. Pensa em adaptar o sistema de jogo aos jogadores que têm. Como técnico de computação, tem facilidade em estudar pela internet e conta que assiste futebol do mundo todo, do Brasil à Finlândia.
- O bom técnico vê tudo. Tenho conhecimento para passar, para dar uma nova cara, manter o jogo bonito do Brasil, respeitando características locais. Mas se fizer três gol e levar seis deixa de ser jogo bonito. O futebol mudou, é mais dinâmico, o jogador tem menos tempo para pensar - avalia.
"O futebol hoje tem muita ciência. A forma como corre, como se agacha, como salta, é tudo medido e calculado. A única coisa que preciso é que se abra uma porta, depois venho com meu trabalho"
— Arcadio Ghiggia