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Funcionário vascaíno sofre com a paralisação do Maracanã

Código de identificação dos escravos, o pé descalço representa a liberdade e o orgulho de Enéas de Andrade.

Sem sapatos, com a calça puída pelo tempo, pisava o gramado do Maracanã, sem saber se volta em três anos. Convocado para o último ato do ritual de todo domingo, de prender as redes e carregar jogadores na maca, o negro de 70 anos olhou para o céu e pediu forças: — Não está chovendo, é o Maracanã que está chorando.

Autor de o “Negro no Futebol Brasileiro” e nome do estádio que abriga a festa de todas cores, Mário Filho é um monumento à democracia da bola.

Embora a obra do jornalista conserve atualidade, a necessidade de modernização do Maracanã para a Copa do Mundo de 2014 traz de volta questões dos tempos em que o futebol era esporte de elite.

— É isso que eu estou com medo. No Pan, a gente já não trabalhou. Até a Copa, vou manter a forma na academia — disse Enéas, ciente de que os padrões da Fifa, com balizas retráteis e funcionários poliglotas, se impõem à cultura local. — A gente não sabe aonde vai.

Multidão na marquise Além do corpo, construído à base de muita musculação e angu à baiana, Enéas terá que conservar o passado por conta própria.

No ritmo da escavadeira, que já havia soterrado a festa mais popular da geral, o progresso é irreversível. Tombado pelo patrimônio histórico, o Maracanã terá a fachada preservada.

Internamente, no entanto, o projeto original é página virada pelas exigências de segurança e conforto. Nas escadas estreitas que levam às tribunas, a paixão deixou marcas desde a Copa de 1950. Gastos pelo tempo, os degraus por onde passaram Mário Filho, Nelson Rodrigues, Armando Nogueira e João Saldanha, entre outros, são peças de arqueologia.

Quando o estádio for reaberto, com corredores largos e escadas rolantes no lugar do hall dos elevadores, certos lugares só poderão ser visitados pela memória afetiva.

— Era tão lotado que até na marquise havia gente. Vai ficar muito bonito, bacana, mas não vai mais caber aquele pessoal todo da Copa passada — disse Oliveira Alves de Souza, como se 1950 ainda ecoasse nas arquibancadas que ajudou a construir — Muita gente morreu, mas eu fiquei.

Da carteira emborrachada e fluorescente, que remete aos anos 80, o funcionário mais antigo do estádio tira o documento que se impõe às tendências passageiras e traz a dimensão da eternidade. No extrato do Fundo de Previdência Social do Rio, tem direito como aposentado de portaria ao rendimento mensal líquido de R$ 908,78 pela admissão em 31/10/1949. Desde que se inscreveu num domingo à noite, quando o Maracanã nem existia, o retirante, pai de seis filhos e viúvo três vezes, encontrou abrigo para a vida toda.

— Gosto da minha casa conforme gosto do Maracanã. — disse com voz fraca, olhos semicerrados e a sensibilidade preservada para reconhecer a grandeza do estádio na vida de um homem de 1,60m — Amo isso aqui de coração.

Ao decidir trocar Maceió pelo Rio, numa viagem “de 12 dias e 12 noites”, Oliveira sequer sabia que Maracanã era uma espécie de papagaio encontrado no rio que daria nome ao estádio.

Só conhecia o Pau de Arara, termo pejorativo dado ao caminhão que trazia os nordestinos sob improviso e algazarra comparáveis ao transporte das aves em estrados de madeira. O barulho só iria aumentar. Primeiro, eram as picaretas quebrando pedra no Morro da Mangueira para fazer o cimento que construiria o gigante. Depois, veio a trilha sonora do futebol.

Mesmo nas noites de plantão como vigia, sentia-se protegido pela multidão invisível.

— Nunca vi fantasma aqui não — disse, a despeito da maldição da Copa de 1950.

As derrotas do jogo não lhe machucaram tanto quanto as da vida. Até 1965, Oliveira era vizinho do Maracanã, na favela do Esqueleto, removida pelo governador Carlos Lacerda para a Zona Oeste. O processo de mandar a pobreza para a periferia é cíclico na cidade e no entorno do Maracanã. Com sua capacidade reduzida à menos da metade do projeto original, o estádio terá mais qualidade do que quantidade para atender turistas e parâmetros internacionais antes dos torcedores e da tradição local.

— Acho que não vai dar mais — disse OIiveira, sem esperanças de voltar após as obras, quando terá 89 anos.

Enéas não desiste. Apelidado de Mike Tyson, embora sua carreira no boxe não tenha resistido ao primeiro soco que levou no São Cristóvão, é tão forte quanto os alicerces do Maracanã e as amizades que acumulou ali. Ex-funcionário do Banco Nacional, orgulhoso por ter feito a segurança de Ayrton Senna, da festa de 15 anos da apresentadora Angélica e do casamento da atriz Cláudia Raia, Eneas ganha R$ 50 por jogo no Maracanã mas é um homem rico de boas lembranças.

De Maradona, ganhou uma meia. De Zico, diversos convites para dar uma força no carnaval dos Antunes em Quintino. A partir de hoje, teme ficar sem lugar na festa da qual faz parte desde a metade dos anos 1980: — Tenho medo de ninguém me conhecer, de ficar isolado.

Nos subterrâneos da alma Com o apagar das luzes, vem o silêncio e depressão.

Em seu conto “À Procura de uma Dignidade”, Clarice Lispector faz do subterrâneo do Maracanã deserto seu labirinto existencial e metáfora de uma vida sem saída. Na aflição da Sra. Jorge B. Xavier, “havia uma multidão que existia pelo vazio de sua ausência absoluta”.

A frase se estende ao Vascaíno Enéas, ao tricolor Oliveira e a todos os torcedores que ficarão desabrigados nestes dois anos e meio. Da mesma forma que uma igreja traz paz aos fiéis, o Maracanã é um espaço sagrado para multidões.

Independentemente das emoções do jogo, estar no templo já é o bastante para a experiência do bem estar, da alegria e do reencontro com os melhores momentos da vida.

— Como é bom pisar nessa grama — suspira Enéas, que vai à missa nas manhãs de domingo na Igreja de Santa Edwiges antes de seguir para o Maracanã no ônibus 665 (Pavuna-Saens Peña).

Junto com a estrutura do anel inferior, a rotina de Eneas já se quebrou. A modernização trará uma nova leitura do Maracanã, com seus camarotes climatizados e tribunas vips. Seis décadas depois de Mario Filho contar como a negritude tinha que ser escondida e passou a ser exaltada pelo talento dos craques, o estádio encerrou ontem a era das massas. Daqui a três anos, será reaberto junto com a discussão sobre o papel do futebol na realidade social brasileira.

Para quem acredita na elevação dos espíritos, depois da dor da despedida haverá sempre a alegria do reencontro.

(Matéria reproduzida diretamente da versão papel do Jornal O Globo)

Fonte: Jornal O Globo
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