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Futebol Feminino: Convocada para a 1ª Copa do Mundo, Fia relembra momento

Entre paçocas, azeitonas em conserva, lâminas de barbear e um freezer com cerveja sempre gelada, um desbotado jornal colado à parede sequer chama a atenção. Mas a vizinhança do bairro Saibreira, em Bangu, não precisa ler a reportagem para saber que a dona do trailer tem muita história e também faz parte dela. 

O exíguo espaço, que cabe, no máximo, duas mesas com cadeiras, é hoje o ganha pão de Maria Lucia Lima, de 55 anos. Quem frequenta a birosca para comer um torresmo no fim de semana, porém, conhece mesmo a Fia, derivação de filha como a mãe mineira a chamava: a meia esquerda de potente canhota, que colocava a bola onde queria, e encantou Castor de Andrade, então presidente do Bangu. 

Lá nos idos dos anos 70, a menina esguia de pernas grossas era disputada pelos garotos de Realengo nas peladas de rua. Mal sabia ela que mulher jogar futebol era proibido pelo Decreto-Lei 3.199 desde 1941. 

Assinado pelo presidente Getúlio Vargas trazia no artigo 54: "às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza..." O futebol era um deles. 

Quando Dona Wilma, mulher de Castor, organizou uma peneira para formar um time feminino, no início dos anos 80, a lei já havia sido revogada, em 1979. Porém, sem qualquer regulamentação. Só veio quatro anos depois, por pressões dos próprios clubes em formação, como o Radar, de uma parcela da imprensa, na esteira do movimento feminista e da movimentação da Fifa, presidida por João Havelange, para criar o primeiro mundial chancelado pela entidade. Essa demora cobra o preço até hoje, segundo especialistas. 

— O Bangu teve um papel interessante e a Fia era uma das principais jogadoras. Eles participam do debate promovido pelo Jornal dos Sports, que pergunta: "As mulheres podem jogar futebol?" A resposta é sim. Isso pode espantar hoje, mas naquela época fazia sentido. Dos anos 40 aos 70 era não; nos 70 é talvez, nos 80 é alvo de discussão — explica Leda Maria da Costa, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Esporte da UFF. 

BICHO DAS MÃOS DE CASTOR DE ANDRADE E NOME NO PLACAR DO MARACANà

Alheia à lei e à falta de regulamentação, Fia só queria continuar jogando suas peladas. Foi convencida por um amigo do bairro, que identificou o talento, a ir até Moça Bonita fazer o teste: 

— Foi a primeira vez que joguei com outras mulheres. O Castor ficou doido quando me viu jogando. 

Difícil mesmo foi convencê-la a calçar o kichute — não havia chuteiras para mulheres naquela época. Os pés tamanho 37 não se adaptavam ao confinamento, que a impedia de bater forte na bola. Chegou a pedir para jogar descalça, mas, claro, não deixaram. 

Das recordações, que surgem como se estivessem acontecendo naquele momento, um jogo em especial. Numa preliminar de Bangu x Cruzeiro, no Brasileiro de 82, no Maracanã, Castor prometeu o bicho em caso de vitória, assim como fazia com os homens. A camisa 10 deixou seu nome no histórico placar e, no vestiário, uma bolsa com bolos de notas foi distribuída entre as jogadoras. Ainda que não houvesse regulamentação, os clubes tradicionais estavam dando início ao boom. 

— Mobiliei a casa toda... Uma vez, ele perguntou se meus pais me viam jogar. Disse que não tinha televisão. Ele me deu uma — relembra Fia, tricolor por causa do pai, mas que nunca viu um jogo no estádio. 

A experiência foi curta, e Fia tentou outros caminhos até chegar ao Vasco. Lá, pelas mãos da técnica do clube Helena, alcançou a primeira seleção feminina de futebol da CBF. Com ela, foi à China, em 88, para o teste da Fifa antes do Mundial de 1991, o início da profissionalização mundial. Até hoje guarda a camisa 17 do uniforme imortalizado pelos homens na Copa de 94 — assim como há bem pouco tempo, não tinha um modelo próprio para elas. 

— Aproveitei todas as chances que tive, mas não peguei o boom da geração atual. A idade chegou antes do futebol engrenar — diz ela, que lapidou o caminho para Marta, sua reserva no Vasco. 

Fonte: GloboOnline
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