Arbitragem vítima de sequestro-relâmpago. Homens encapuzados no hotel, suborno ao árbitro. Milhares de dólares em malas. Jogadores convidados para uma festa regada a cocaína às vésperas da decisão. Ameaças a dirigentes. Operação sigilosa, com viagem em um jatinho até o Paraguai. Pressão. Julgamento com quase vias de fato na Conmebol.
Fatos, fakes e muita história para contar resumem o jogo anulado entre Atlético Nacional e Vasco pelas quartas de final da Libertadores de 1990. Um confronto que começou no campo, em Medellín, passou pelo tribunal da confederação sul-americana em Assunção, no Paraguai, e só terminou com partida remarcada e vitória colombiana sobre os brasileiros (1 a 0) em Santiago, no Chile, dia 13 de setembro de 1990.
Um depoimento inédito de um dos personagens envolvidos naquela partida de 29 de agosto - 2 a 0 num lotado Atanasio Girardot, em Medellín - traz luz aos fatos de horas antes do confronto de volta das quartas de final da Libertadores.
- No dia da partida, estávamos tomando café da manhã no hotel e apareceram três senhores e disseram que queriam arbitragem imparcial, que o povo colombiano precisava de uma vitória. E aí nos ofereceram dinheiro - contou, por telefone ao ge, Otello Roberto, assistente de Juan Cardelino, no trio uruguaio que ainda tinha José Martínez. Os outros dois faleceram em 2017 e 2015, respectivament
Os homens que tentaram subornar os uruguaios nunca foram identificados. Mas o caso chegou aos ouvidos de Eurico Miranda, então vice-presidente de futebol do Vasco. Com atuação nos tribunais e ajuda de nomes influentes na Conmebol e na CBF, ele conseguiu a anulação da partida.
O ge revisitou a história daquele confronto. Livros, séries, depoimentos e entrevistas ajudam a contar o contexto da época e a separar o que, de fato, ocorreu do que virou folclore.
Vasco e Atlético Nacional fizeram três jogos em 23 dias naquelas quartas de final. No Maracanã, empate por 0 a 0, dia 22 de agosto. Em Medellín, vitória colombiana por 2 a 0, dia 29 de agosto. Finalmente, em Santiago, os colombianos levaram a melhor por 1 a 0, no dia 13 de setembro de 1990
Assassinato em 1989
As décadas de 1980 e 1990 foram de expansão interna e surgimento para a comunidade internacional de Pablo Escobar. O tráfico de cocaína, especialmente para os Estados Unidos, gerou uma fortuna. Estima-se que, no auge, rendia US$ 30 bilhões por ano. Com dinheiro, veio o poder. Escobar era um dos chefões do cartel de Medellín. Na mesma época, Francisco Maturana (depois Hernán Gomez) comandava a seleção colombiana com uma geração brilhante que fez história no país. Em 1989, o Atlético Nacional conquistou a primeira Libertadores de um clube colombiano na história.
Então campeão brasileiro, o Vasco tinha bom time em 1990. A equipe não era mais comandada por Nelsinho Rosa, que se tornara auxiliar de Sebastião Lazaroni na Seleção, mas tinha a volta de Roberto Dinamite, depois de passagem pela Portuguesa. A baixa era Bebeto, principal jogador, que estava lesionado.
- Apitei muitas vezes em Medellín, e o grande time da época era o Nacional. Tinha Higuita e muitos outros jogadores, mas o ambiente era pesado. Não era novidade que o narcotráfico colombiano comandava o Nacional e o América de Cali. E tinha muita coisa de aposta. A gente ouvia falar em reuniões com árbitros colombianos. O primeiro lateral valia US$ 100, o primeiro amarelo, US$ 500. Se o pênalti valia US$ 10 mil, imagina o resultado do jogo? E esse dinheiro vinha do narcotráfico. A relação era essa - conta Renato Marsiglia, ex-árbitro brasileiro que apitou na Copa do Mundo de 1994.
O filho de Pablo Escobar disse, há cinco anos, em entrevista ao ge, que o pai nunca se meteu no futebol. Inclusive, torcia para o rival do Nacional, o Independiente de Medellín, ex-time do hoje artilheiro vascaíno Cano. No entanto, assim como usou a política em determinado momento, o futebol era outro instrumento de popularidade. E o poder e a grana do narcotráfico atraíam os grandes nomes do país - inclusive do futebol.
Ex-dirigente e representante até 2017 de clubes na Conmebol, Hildo Nejar é outra testemunha do que se passava em Medellín. Na ocasião, o presidente da confederação sul-americana, Nicolas Leóz, o enviou como observador da partida. As denúncias envolvendo intimidações e coações em jogos na Colômbia se acumulavam. Um ano antes, o árbitro Álvaro Ortega havia sido assassinado, em Medellín, em 1989, em morte ligada a apostadores e ao tráfico. O campeonato local foi cancelado após o trágico incidente.
- Não foram poucos os árbitros que tiveram revólver na cara. Nenhum árbitro gostava de apitar na Colômbia, as federações não deixavam. Ernesto Filippi, do Uruguai, teve arma na cara. O mesmo com o Juan Loustau, da Argentina. Acho que o Ubaldo Aquino, do Paraguai, também. O Juan Londono, presidente da federação colombiana, gostava muito de mim. Então, ele ligou ao Abilio de Almeida, vice-presidente da comissão de arbitragem da Fifa, pedindo que eu fosse apitar Independiente de Medellín x Junior de Barranquilla, nas quartas da Libertadores de 94. Inicialmente, ele disse não. A coisa chegou ao João Havelange, que decidiu me mandar. Mas ele alertou: se encostarem um dedo nele, eu risco a Colômbia do mapa da Fifa - recorda Marsiglia.
O árbitro Álvaro Ortega foi assassinado depois de duelos entre o Independiente de Medellín e o América de Cali, que tinha por trás os irmãos Orejuela, temidos rivais de Escobar pelo domínio do mercado do narcotráfico internacional.
- Houve sequestro-relâmpago num jogo anterior, por isso estavam todos de olho em Medellín no jogo contra o Vasco. Mas Cardelino (árbitro do jogo) denunciou. Depois, houve cerco policial, o (Rafael) Esquivel, delegado da partida, entrou em contato com o presidente da federação da Colômbia, fizeram esquema policial, rodearam o ônibus do Vasco. Era um momento muito inseguro na cidade de Medellín. Foi um dos poucos jogos anulados até hoje - contou Nejar, que foi a Assunção no julgamento da partida.
Sequestro, ameaças ou suborno?
Com um assassinato atribuído ao tráfico um ano antes, aquele Nacional de Medellín x Vasco era cercado de cuidados por parte da delegação vascaína. Então vice-presidente jurídico do Vasco, Paulo Reis lembra que Eurico decidiu levar, além do vice jurídico, mais dois advogados na delegação.
- Eurico gostava que fosse sempre um advogado. Íamos sempre eu e o Leopoldo Felix, que era advogado interno do Vasco. Fomos eu, mais o Custódio Oliveira Neto e o Leopoldo. Eurico sabia que poderia acontecer alguma coisa estranha na nossa viagem. Geralmente ia eu ou Leopoldo, mas fomos os três - lembrou Paulo Reis.
As reportagens de jornais da época relatam dificuldades dos vascaínos na chegada à Colômbia, como problemas de visto de entrada para Tita e o técnico Zagallo - ameaçado de prisão no aeroporto de Medellín. Mas o que marcou Paulo Reis foi outro acontecimento, na véspera da partida.
- Na véspera do jogo à noite, depois do jantar, sentei com Tato e mais dois jogadores para bater papo no salão nobre do hotel. Chegou um casal, uma loira lindíssima, o cara sentou entre nós e começou a puxar assunto. Chegou uma hora em que disse: "Olha, eu tenho uma festa no meu terraço, estejam à vontade." Ele abriu uma nota, não lembro se era de dólar, o que era, mas botou pó nela. "Vocês são nossos convidados." E isso tudo com policiamento enorme ali no nosso hotel - lembrou Paulo Reis.
No livro "Eurico Miranda - Todos contra ele", o historiador Sergio Frias publicou trecho do relatório da Conmebol em que a entidade decidiu anular o jogo. Falava em "gravidade dos fatos ocorridos", apesar do forte aparato policial.
Veja o trecho do livro sobre Eurico
O bandeirinha Otello Roberto, no entanto, conta que houve apenas o episódio do café da manhã, com três homens oferecendo dinheiro. Eles recusaram e nada mais viram de diferente. A Conmebol os trocou de hotel e eles dormiram no mesmo local onde estavam os vascaínos, o Intercontinental de Medellín.
- Disseram que eram uma ordem (aceitar o dinheiro). Nós não aceitamos. E assim nos disseram que, se entendessem que fôssemos mal ou que beneficiamos o Vasco da Gama, haveria represália. Eles nos disseram: "Está perfeito, entendam como queiram". Diante disso, então, eles se foram - contou Otello.
À época, jornais brasileiros reproduziram frases de Eurico Miranda dizendo que homens encapuzados ameaçaram os árbitros, entre outras ameaças por telefone e até um suposto sequestro-relâmpago, mas não há registros disso. Otello Roberto também nunca soube a quantia dentro da mala, pois ela não foi aberta. Reportagens da época estimaram em US$ 20 mil a tentativa de suborno.
- (Depois), nos juntamos no apartamento do hotel e decidimos falar com o delegado da partida, o venezuelano Rafael Esquivel, que hoje está cumprindo condenação com o caso Fifagate. Ele ligou para a Conmebol, porque nessas condições não se deveria apitar. Bom, ao final de muitas idas e vindas decidimos apitar. Mas não abriram a mala. Depositaram em cima da mesa onde estávamos tomando café. E nos disseram isso. Que o povo da Colômbia precisava de uma vitória. Mas em nenhum momento eles disseram que vinham de parte do Nacional nem falaram o destino - recordou.
O juiz favoreceu o Nacional?
O ge ouviu diversos envolvidos, inclusive o assistente uruguaio, sobre a arbitragem daquela partida. Os vascaínos à época reclamaram bastante da expulsão de Tita, de impedimentos a cada ataque vascaíno e do pênalti, que Higuita bateu e Acácio defendeu. Luis Carlos Winck e Zé do Carmo notaram algo além de uma "arbitragem caseira": o nervosismo do trio de uruguaios. Otello conta o que recorda.
- A sensação de insegurança era muito grande. Graças a Deus não aconteceu nada. Houve essa tentativa de suborno e uma ameaça de que, se favorecêssemos a outra equipe, haveria consequência. Essa intranquilidade nos preocupou. Mas foi partida normal. Não houve nenhuma jogada litigiosa. Isso nos favoreceu também. (Sobre o pênalti?) Na verdade não me lembro. Não estou nem discutindo o lance, pois não lembro.
Havia poucos veículos de imprensa brasileiros no jogo em Medellín. Na reportagem de "O Globo", há destaque para a arbitragem parcial dos uruguaios e um vestiário que "parecia um corredor da guerra do Golfo Pérsico, com cerca de 20 guardas, armados de metralhadora".
- No fundo, nós sentimos medo durante o jogo. A gente não sabia o que poderia acontecer. Até tinha uma ideia, não vou ficar aqui falando. Vocês sabem o que a máfia fazia, ou seja, a gente tinha essa ideia. Era algo que estava fora da segurança como um todo. Então, isso prejudicou o nosso time durante aquele jogo - conta Luis Carlos Winck.
"Eurico quase bateu neles"
Eurico Brandão, filho do ex-dirigente, falecido no ano passado, tinha 12 anos quando o pai viajou para a Colômbia e depois foi até o Paraguai para conseguir a anulação da partida. Eurico dizia aos jornalistas que acompanhavam o clube que, "no mínimo", o Vasco jogaria outra vez. Mas ele queria os pontos do jogo. Ou seja, a classificação do Vasco e a eliminação do Nacional.
- Meu pai vivia repetindo “a gente vai anular o jogo”. Pois o juiz foi ameaçado, a equipe foi ameaçada. Tinha policiais armados dentro do vestiário. As pessoas ficaram com medo, né? Muita gente viajou para lá no dia do jogo, mas ninguém quis ir para o julgamento. Ele ouvia muito isso de “deixa isso para lá”. Desde o primeiro dia em que voltou, ele tinha a convicção de que iria anular a partida - contou Euriquinho, que foi vice-presidente de futebol no último mandato do pai (2015-2017).
Os episódios depois da partida em Medellín tornam a história uma aventura. Paulo Reis lembra da reunião no quarto de hotel de Leopoldo, um dos advogados, e uma mensagem anônima que chegou enquanto se discutia a estratégia para anular aquela partida.
- Estávamos reunidos para definir o que ia ser feito, montando esquema para ver como íamos embora, ligando para a agência, mudamos nosso voo, que só sairia de tarde… E lembro, fico arrepiado até, eles botaram bilhete embaixo da nossa porta e falava mais ou menos assim: "Fiquem calados que é melhor para vocês". Na mesma hora, pedimos e ficamos cercados de policiais - disse o ex-dirigente do Vasco.
Eurico levou reforço para Assunção. Em outros tempos, com o Vasco em condição financeira privilegiada à época - recém tinha vendido Geovani, Donato, Mazinho e Romário -, o clube alugou um jatinho e o dirigente embarcou com Eduardo Vianna, presidente da Ferj, e Hildo Nejar para a sede da Conmebol, no Paraguai.
O julgamento levou mais de um dia. Primeiro, o departamento jurídico vascaíno conseguiu a suspensão do confronto do time colombiano com o Olimpia na véspera da partida das semifinais, em reedição da final continental do ano anterior. Depois, já na madrugada de 6 de setembro, decidiu-se pela remarcação do jogo. Nacional e Vasco voltariam a se enfrentar dia 13 de setembro, no Chile, no estádio Santa Laura. O clima esquentou na sede da Conmebol.
- A reunião foi uma discussão violenta entre os dirigentes do Nacional de Medellín e o Eurico. Eurico quase bateu neles. Ele não era fácil também. (No jogo), o problema é que ele queria vir embora, eu dizia: "Como você vai embora, Eurico? Se você tira o Vasco daí, vai ser o caos, vai ser morte, vai ser o diabo. Joga e depois vemos que bicho vai dar. O presidente te orientou" - recordou Nejar.
De longe, Euriquinho acompanhou as notícias através da imprensa e de informações que a mãe lhe repassava. Não escapou, porém, de ameaças dentro de casa. De origem nunca identificada.
- Ele recebeu alguns telefonemas ameaçadores nessa época. Quem ligava falava em espanhol e dizia que ele ia morrer, que o avião não ia chegar, que não ia ter julgamento, que ele não ia chegar na Conmebol. E ele foi, teve julgamento e nada aconteceu. Mas tiveram essas ameaças sérias - lembrou o filho de Eurico Miranda.
Gol perdido e nova derrota
Apesar de todo o esforço para anular o jogo, o time de Zagallo perdeu novamente, agora no Chile. Arboleda, que havia marcado no jogo anulado (o outro fora de Hernándes), fez o gol em cobrança de escanteio. Antes, no início da partida em Santiago, "Sonny" Anderson, atacante revelado pelo Vasco e que faria sucesso no futebol europeu (com passagem pelo Barcelona), perdeu gol inacreditável.
Com orgulho ferido, depois da anulação da primeira partida, os colombianos prometeram show de bola, mas não foi preciso. A vitória simples classificou o time para enfrentar o Olimpia, com jogo de ida novamente em Santiago, uma vez que a Colômbia foi proibida de sediar jogos de competições sul-americanas por um ano. Na volta, em Assunção, o time paraguaio ganhou nos pênaltis e avançou à final, na qual derrotou o Barcelona de Guayaquil.
Cartel de Medellín e a ditadura de Pinochet
A atuação do tráfico no futebol não era restrita aos clubes. Para tentar ajudar a Colômbia a se classificar para a Copa da Itália, em 1990, os narcos atuavam nas eliminatórias. Renato Marsiglia conta que seu colega chileno Hernán Silva, após apitar a vitória do Paraguai sobre a Colômbia, em 1989, foi peitado por colombianos nos corredores do Defensores del Chaco. E jurado de morte caso a Colômbia não fosse ao Mundial.
Segundo Marsiglia, Hernán Silva relatou o caso à polícia chilena, país que vivia o último ano da ditadura militar de Augusto Pinochet. A proteção dada ao juiz foi desafiada por comandados de Escobar.
- Não demorou e ele passou a receber telefonemas ameaçadores em Santiago, no Chile. Não tinha celular na época, então trocaram os números dos telefones de casa. Mantiveram ele monitorado, sob controle do estado. As eliminatórias foram para a última rodada, era Equador e Paraguai em Guayaquil. O Equador ganhou e, com isso, a Colômbia foi para a Copa. Terminado o jogo, cinco minutos depois, tocou o telefone da casa do Hernán. Ao atender, ouviu: “escapaste de morir, hijo de gran puta”. Rastrearam a ligação imediatamente, era da Colômbia. O cara protegido pela ditadura do Chile foi encontrado. Ou seja, ele escapou de morrer mesmo.