Para o jogador de futebol, a concentração tem como premissas, na teoria, o descanso e a alimentação regrada. Mas, entre quatro paredes, corredores e saguões de hotéis, os dribles são comuns nas regras impostas e produzem histórias curiosas: pedidos de sanduíches em redes de fast food, pizzas, encontros furtivos, artimanhas para levar bebidas alcoólicas até os quartos, noites em claro - antigamente com rodas de carteado, hoje com a internet - e outros casos que povoam os bastidores do esporte bretão e colocam em dúvida a eficácia do regime de clausura antes dos jogos.
As proibições impostas pelas comissões técnicas podem ter o efeito estimulante, na base da frase o proibido é mais gostoso. Psicólogo do Flamengo durante 22 anos e atualmente responsável por uma clínica, Paulo Ribeiro analisa a relação entre atleta e concentração.
- Não se trata apenas da concentração, mas tudo que é proibido convida a transgredir. Dependendo do perfil do jogador, ele vai burlar uma situação proibitiva. Mas é bastante importante ter o controle ou, ao menos, tentar. É uma minoria que não come aquilo que está prescrito. Existem muitos benefícios, como reunião com treinador, o fato de jantarem todos juntos, mas não é concentração que ganha jogo destaca Paulo Ribeiro.
O psicólogo, porém, diz que também pode ter o lado negativo e destaca uma condição para abolir o regime de concentração:
- É importante por um lado, mas por outro pode ser ruim, pelo ócio, a distância da família. Mas, para não ter concentração, seria preciso um grupo muito maduro.
Guloseimas na bolsa e negociações por cerveja
Como não existe uma espécie de revista, o jogador que desejar infringir as regras consegue levar bebidas alcoólicas e guloseimas nas bolsas sem ser incomodado. Em certas ocasiões, também negociam com funcionários dos hotéis ou acionam amigos para cumprirem a missão cervejeira.
Em episódio anotado pela antiga diretoria do Flamengo, Ronaldinho Gaúcho teria oferecido US$ 100 (R$ 200) a um garçom durante uma viagem internacional da Libertadores de 2012 para levar cerveja no quarto dele. Vice-presidente de futebol na época, Paulo Cesar Coutinho tomou conhecimento da tentativa que, dessa vez, acabou frustrada.
- É lógico que eles vetam muitas coisas, mas sempre dá para levar aquele Danoninho, um biscoito recheado, um quitute escondidinho na mala para a fome da madrugada brinca o zagueiro Fabiano Eller, atualmente no Audax-RJ.
Eller, que teve passagens por Vasco, Flamengo, Fluminense, Internacional, Palmeiras, Santos, entre outros, lembrou de uma brecha no rigor do regime de concentração:
- Quando jogava no Vasco (fim dos anos 90 começo de 2000), o time se concentrava no Othon Palace (hotel em Copacabana), e era bem liberal. Tínhamos liberdade para pedir coisas no quarto de madrugada, como sanduíche completo, banana split e sorvete. Teve até um amigo que quebrou: em vez de pedir passas ao rum, pediu sorvete ballroom, que era o nome de uma boate no Rio (risos). Eu dividia o quarto com o Carlos Germano, e ele bebia umas duas garrafas de café por dia. Quando chegava à noite, ele não queria dormir. Eu estava dormindo e, lá pelas 2h da manhã, ele me acordava: Boquinha, Boquinha, vamos pedir um sorvetinho?.
Nem sempre o pedido fica restrito a um mero sorvetinho. No Vasco, é conhecida uma história que teria sido protagonizada por Carlos Alberto numa intertemporada realizada durante a paralisação do Campeonato Brasileiro para na Copa do Mundo de 2010. Com o time concentrado em um hotel em Mangaratiba, o jogador teria feito um pedido inusitado para a cozinha: uma porção de camarões e algumas cervejas em dia de jogo da seleção brasileira. Técnico do time na época, Paulo César Gusmão foi comunicado e teria surpreendido o meia logo após a entrega do banquete.
Carlos Alberto negou, através da sua assessoria de imprensa, e disse que dessa vez não vai assumir algo que não foi ele quem fez:
- Muitas vezes algumas coisas caem na minha conta, isso já virou folclore.
Também no Vasco algumas histórias do polêmico Valdiram ficaram famosas na concentração. Em uma delas, um companheiro de quarto acordou assustado com o atacante ao seu lado numa cama de solteiro, e o caso quase terminou em briga.
Nutricionista destaca responsabilidade dos jogadores
Rodrigo Vilhena está há nove anos no Botafogo, sendo que passou a trabalhar com o grupo profissional no meio de 2012. Formado em Nutrição pela Gama Filho, com pós-graduação em Nutrição Esportiva, ele destaca a importância de um trabalho que vai bem além da concentração. E que precisa de confiança e responsabilidade para funcionar.
- No início do ano, os jogadores recebem um plano alimentar individualizado, de acordo com a necessidade de cada um, percentual de gordura... Eles têm todas as refeições, orientações, a questão da hidratação. Também fizemos uma palestra sobre nutrição. O grupo do Botafogo é muito responsável, confio muito neles. Às vezes, quando viajamos e eles veem alguma coisa suspeita no hotel, ficam em dúvida se podem ou não comer, e perguntam. Mais do que jogadores de futebol, eles são atletas e precisam cuidar do corpo diz Rodrigo Vilhena.
Em jogos no Rio, o Botafogo se concentra na noite anterior à partida. O elenco fica no alojamento de General Severiano. Em razão do atraso dos salários, o grupo anunciou que não se reuniria na véspera dos jogos contra Madureira e Friburguense. O êxito da equipe e a opinião do técnico Oswaldo de Oliveira, que vê próxima a falência do modelo, farão com que a concentração seja avaliada jogo a jogo no clube.
Enquanto isso, por conta da estrutura da sede alvinegra, burlar as normas é missão quase impossível.
- No nosso CT, seria quase impossível pedir algo de fora. Converso com os garçons, com o pessoal da cozinha, somos muito fechados, e deixo claro que não pode entrar nada que não seja prescrito, assinado e carimbado por mim. Não vai ligar e pedir um lanche do McDonald\"s. Mas eles estão conscientes disso e não temos problemas completou o nutricionista.
Carteado dá lugar à internet até alta madrugada
Há alguns anos, o carteado era o principal passatempo de jogadores, que se reuniam nos quartos para partidas de pôquer, buraco ou truco. Com o crescimento e a consolidação da internet, a grande rede se tornou a principal aliada das madrugadas dos jogadores. Além dos modernos videogames.
- Onde mais se comentava sobre futebol era na concentração. Só que hoje, para mim, a concentração é uma mentira. A tecnologia está dentro da concentração. Me tornei um dinossauro. Não tenho laptop e nem nada. Só chimarrão e olho jogo de futebol. O pessoal acaba a janta e... laptop, Playstation. Então você perde contato. Tem jogador por aí que você não sabe se tem filho, se tem namorada, se tem pai, como é a situação dele chiou Loco Abreu, nos tempos em que ainda atuava no Botafogo.
Fabiano Eller atesta a mudança de hábito:
- Lembro até hoje de 2004, quando o Flamengo viajava muito para Volta Redonda. Eu era o fenômeno do baralho. Nessa época, nem mexia na internet, aprendi o MSN com a molecada. Jogávamos muito baralho, juntava uma galera, era um passatempo na concentração, apostávamos \"dezinho\". Concentração é bem chato, mas necessário.
É raro um jogador que durma cedo na concentração. Em dias de jogos à noite, são poucos os que descem para o café da manhã, aparecendo apenas para o almoço, que na maioria das concentrações tem início ao meio-dia.
Uma das exceções era Petkovic. O sérvio tinha o costume de madrugar e estava de pé antes das 7h, o que fazia com que jogadores fizessem de tudo para não dividir o mesmo quarto com o gringo.
Cardápio: sanduíches para Obina e mulher para Ronaldinho
Quando ainda atuava pelo Flamengo, Obina, hoje no Bahia, travava uma luta constante com a balança, o que não impedia que ele encomendasse, através de amigos que tinham trânsito livre no hotel que serve de concentração para a equipe, fartos lanches em redes de fast food.
O goleiro Bruno era quase um chocólatra. Um integrante da comissão técnica que já não está mais no clube tinha a missão de conseguir as guloseimas.
O volante Jônatas certa vez foi flagrado nu no quarto da concentração enquanto se fartava com pizza e assistia a um filme adulto. O jogador virou alvo de gozação dos companheiros.
Em 2012, também no Flamengo, um caso envolvendo Ronaldinho Gaúcho movimentou o noticiário. Na pré-temporada, o então treinador Vanderlei Luxemburgo flagrou o camisa 10 em atitude suspeita no hotel que servia de concentração para a equipe, em Londrina. O técnico já desconfiava da presença de uma mulher. Meses depois, o clube divulgou um vídeo (assista ao lado) com imagens do circuito interno do hotel que comprovavam a indisciplina.
A tática usada para o encontro furtivo foi simples. Como hóspede, a mulher ficou no mesmo hotel de Ronaldinho, mas alguns andares acima.
Os casos de infração das regras da concentração atravessam as décadas. Às vésperas da Copa de 1986, o lateral Leandro e o atacante Renato Gaúcho fugiram e só voltaram de madrugada para a Toca da Raposa, concentração da Seleção de Telê Santana. Renato foi cortado, e Leandro renunciou à sua vaga.
Técnico da Alemanha libera geral
Na Eurocopa de 2012, o técnico da Alemanha, Joachim Löw, divulgou uma lista de atos que não seriam proibidos durante o período de concentração: acesso à internet, cigarros e bebidas (vinho e cerveja) e visitas de familiares, mulheres e namoradas e familiares antes das 23h.
Nos anos 80, o movimento Democracia Corintiana, que tinha Casagrande e Sócrates como principais integrantes, decidiu que os jogadores só se apresentariam horas antes da partida.
Um dos grandes críticos da concentração é o ex-atacante Ronaldo. Em 2009, quando defendia o Corinthians, o ex-jogador condenou o regime às vésperas da decisão da Copa do Brasil, quando a equipe ficou uma semana concentrada.
- É muito tempo concentrado, sem ficar com a família. Eu gostaria de passar mais tempo em casa. Na Europa não existe isso. O Barcelona, campeão da Liga dos Campeões, se apresentava no dia do jogo. Só na final precisou chegar um dia antes, porque a Uefa mandou.
Já os jogadores evangélicos costumam se reunir nas concentrações para debater assuntos da religião, orar e ouvir cantores de música gospel. Entre eles, além da reza, o descanso e o cumprimento de regras, com algumas exceções, são respeitados religiosamente.
Desde o início deste ano, a famosa rotina de fechar o grupo sempre um ou dois dias antes dos jogos não existe mais no Coritiba, e o assunto está sendo discutido em outros clubes do país.
No Guarani, por exemplo, a crise financeira foi o motivo do fim do regime de clausura antes das partidas. Para economizar, a diretoria alviverde abriu mão de concentrar o elenco antes dos jogos próximos a Campinas. Com a iniciativa, o presidente Álvaro Negrão calcula que o clube deixa de gastar R$ 10 mil cada vez que não hospeda toda a delegação em um hotel.