A última taça conquistada pelo Vasco sobre o Flamengo, a Guanabara de 2003, teve herói improvável, itinerário incomum dentro e fora de campo, além de inúmeras opções gastronômicas para saborear o triunfo - só faltou avisar do churrasco ao autor do gol. O lateral-direito Wellington Monteiro, deslocado para a esquerda naquele sábado de Carnaval e que na sequência da carreira se firmou como volante, decidiu a parada por desobediência tática.
O Vasco sagrou-se campeão com empate por 1 a 1, levantou taça no Maracanã, mas só pôde colocar a faixa quatro dias depois por pura formalidade - o Americano levaria o troféu se ganhasse o Friburguense na Quarta-Feira de Cinzas por oito gols de diferença, mas ficou no 0 a 0. Mas voltemos ao herói: para ser titular, Wellington foi convidado por Antônio Lopes a jogar improvisado, de pé trocado, algo que prontamente aceitou.
- Primeiro que eu estava de lateral-esquerdo, que nunca foi minha posição. E segundo que eu estava todo torto de lateral-esquerdo (risos). Lembro que o Lopes me chamou brincando, com aquela brincadeira dele, grossa. Ele falou assim: "Quer jogar a final? Respondi: "Claro!". E ele: "Só que tem um porém: de lateral-esquerdo". Tudo bem, mas aí ele disse: "Tem uma situação a fazer, não passar do meio".
Wellington, assim como outros jogadores que haviam chegado de clubes pequenos - era do Bangu -, não contava com a paciência dos vascaínos. E só defender, em sua cabeça, não era uma opção. Teria que desrespeitar a orientação do Delegado.
- Só que no jogo, quando eu pegava na bola, tinha um espaço normal para eu jogar. Mas eu tinha uma parte tática de não apoiar, e as pessoas que estão de fora não entendem, e a gente releva isso. Com uns 20 e poucos minutos, a torcida já estava vaiando muito, mas muito... Ao mesmo tempo eu pensava assim: "Se eu não atacar, eu estou morto". Aí lembro que fui atacar, e o Lopes gritou: "Volta, Monteiro" (risos).
O característico e estridente grito de Lopes de nada adiantou. Monteiro subiu de novo ao ataque e, após linda tabela com Marcelinho Carioca, marcou um golaço.
- Aí na segunda vez, eu pensei: "Tenho que ser audacioso. Se eu ficar esperando, já era, meu irmão". Tem que hora que tem que deixar a parte tática de bola. Foi aí que dei a bola no Marcelinho e avancei. Aí o Marcelinho deu um lançamento espetacular. E muitos falam só do lançamento espetacular, mas não falam do gol. E eu fui muito feliz e acabei fazendo o melhor gol da minha carreira. Um gol de título.
CHORO DO HERÓI
O Flamengo até empatou no segundo tempo com Zé Carlos, mas o rival só ficaria com a taça em caso de vitória. Não conseguiu, e Wellington, à época aos 24 anos, saiu como herói. Na hora de dar entrevistas, mal conseguiu. Estava muito emocionado em função de um problema que enfrentava.
- Chorei porque estava vivendo uma situação muito crítica mesmo. Não aguentei nem falar. Se eu te falar, parece mentira. Eu estava passando uma dificuldade muito grande na parte financeira, porque o Vasco não estava pagando na época. Estávamos um bom tempo sem receber, passando sufoco violento em casa. Às vezes falava para a minha esposa pegar meus filhos e levar na minha mãe para almoçar ou na minha sogra. Lembro que a gente estava na concentração e fomos descer para almoçar. Restaurante de hotel é aquela mesa farta, com tudo, e eu pensando: "Vou comer do bom e do melhor, e a minha família sem ter o que comer em casa".
Petkovic, à época no Vasco, viu desrespeito do Flamengo antes da decisão - Reprodução/Acervo O Globo
CHURRASCARIA E VAN
Em campo, Wellington desobedeceu Lopes no gol e foi à área flamenguista, mas não faltou combustível para voltar à defesa na maior parte do jogo. Já para voltar para casa, o combustível tinha que ser do veículo de terceiros. Não tinha carro à época por falta de condições financeiras e recorreu ao transporte coletivo para se deslocar até Santa Cruz, bairro na Zona Oeste do Rio. O campeão voltou de van.
- Começam a vir mil coisas na sua cabeça, e ali foi um desabafo mesmo. E pode ver uma coisa interessante. Acabou o jogo, aquela festa no Maracanã, mas depois todo mundo foi festejar na churrascaria. Todo mundo ia pegar seu carro, antigamente eu não tinha carro. E eu fui pegar uma van para voltar para Santa Cruz.
- Muitos foram para churrascaria comer do bom e do melhor, e eu fui para casa comer cachorro-quente com minha esposa e meus filhos. É muita coisa. Eu vejo que tive que passar por isso. Todos têm que passar por dificuldade para aprender a viver, eu não culpo o Vasco não. Valeu a pena.
PASSAGEM DE GRAÇA
Wellington conta que queria voltar para casa o quanto antes para ver a esposa (Érica) e os filhos Rhayane (6 anos) e Wellington Lucas (recém-nascido, de 1 mês). Mas a ausência na churrascaria se deu por falta de convite, não por pouco apetite.
- Eu nem sabia que ia ter a festa na churrascaria, ninguém falou nada na hora. Depois que fiquei sabendo, quando cheguei em casa. Teve a festa no vestiário, tomei meu banho. Depois todo mundo falando: "Estou indo para lá". Mas ninguém falou nada. Também estava aquele alvoroço, mas ao mesmo tempo eu queria ir para casa. Queria festejar com as pessoas que estavam sempre com a gente.
Sem picanha e filé mignon, Wellington também teve sua mordomia naquele 1º de março. Não de mesmo glamour e sabor, mas que também garantiu um sorriso. Não era rosto conhecido, mas o material esportivo do Vasco o fez ser reconhecido na van e lhe poupou um dinheirinho.
- Lembro que peguei a van, eu estava com o bolsão do Vasco. Chegou ali na Barra, se não me engano, aí o cara olhou e perguntou: "Pô, cara, tu não é o Monteiro que fez o gol hoje do Vasco?" Aí falei: "Sou eu". Pô, aí começou... "Caraca, que legal, ó o cara aqui na sua van, guerreiro". Pediu para eu dar autógrafo. Foto não porque não tinha tecnologia muito avançada no celular. Aí me lembro que cheguei perto de casa, e o cara da van me falou: "Pô, meu irmão, sou vascaíno, você me deu um título hoje. Não precisa nem pagar a van (risos)". E eu pensei: "Graças a Deus" (risos).
Terminada a longa viagem para Santa Cruz, veio a bonança. Abraço dos filhos e um cachorro-quente dos campeões.
- O legal é que cheguei em casa, estavam minha esposa e meus filhos. Me lembro como se fosse hoje. Ela fez uma salsicha para nós, tinha uns pãezinhos, a gente tomando uma Coca. Feliz da vida, meu caro. Poxa, a gente não esquece.
BACALHAU NO GRAMADO
Antes do jantar familiar, Wellington saboreou bolinhos de bacalhau ainda no gramado, num oferecimento do então presidente - e sempre provocador - Eurico Miranda, que, com os petiscos, rebatera Hélio Paulo Ferraz, presidente do Flamengo. Helinho, como era conhecido, disparou dois dias antes da decisão.
- Esse é um momento de preparação para grande batalha da qual sairemos vencedores. Vamos comer bacalhau no sábado - disse Ferraz.
Após a conquista, com direito a taça e tudo, Eurico respondeu:
- Vou mandar para ele (Hélio Ferraz). São bolinhos de primeira qualidade, sem espinha, que a gente mandou fazer - afirmou, emendando os gritos de "Casaca".
Wellington se diverte com a "cortesia" de Eurico até hoje.
- Me acabei no bolinho de bacalhau, pai (risos). Tinham umas 10 caixinhas de bolinho de bacalhau no vestiário. Tá maluco, já estava cheio de fome mesmo.
Eurico Miranda disse que ia entregar bolinhos de bacalhau no vestiário do Flamengo - Reprodução/Jornal do Brasil
BABACAS QUE “PINTARAM”
Se Wellington e os vascaínos sorriam de orelha a orelha com a conquista, um deles não gostou de parte da comemoração. Promessas daquele time, Léo Lima e Souza sacaram sprays de tinta verde e pintaram o cabelo de todos os jogadores. Petkovic, um dos destaques da equipe, se irritou em entrevista a Eric Faria.
- Eu não pintei, babacas que pintaram!
Wellington Monteiro conta que o sérvio havia sido surpreendido e tentava descobrir quem tinha pregado aquela peça.
- Ele ficou louco porque Souza e o Léo Lima juntos eram uma bomba. Pelo amor de Deus! Eles zoavam o Pet direto (risos), e o Pet nunca foi de brincadeira, sempre foi mais centrado e sério. Estava todo mundo pintado, e o Léo e o Souza vieram por trás e jogaram tinta no cabelo dele. Ele começou a xingar de tudo quanto é lado perguntando "quem era, quem era" (risos).
O ex-jogador, porém, destaca um gesto nobre de Pet na hora de levantar o troféu levado ao gramado do Maraca.
- Uma coisa bacana que fiquei muito feliz nesse dia foi na hora de tirar a foto. Você sabe que tem vaidade de alguns, o que é normal. Cada ser humano é de um jeito. O Pet pegou o troféu e falou: "Não, o troféu é do Monteiro. Deixa ele levantar o troféu".
BRONCA APÓS O TÍTULO
Se o tema é cara amarrada, Antônio Lopes tratou de puxar a orelha de Wellington pela desobediência que originou o gol do título vascaíno. A ousadia do lateral improvisado foi "premiada" com uma bronca.
- No campo eu não falei com ele, estava todo mundo ainda eufórico. Todo mundo chegando para mim: "Poxa, Monteirão, você fez o gol e tal". Chegou no vestiário, a festa continuou, aquela alegria de todo mundo. Ele estava em pé, e eu fui falar com ele (risos). "Aí, professor, viu lá o gol, né?". E ele: "Rapaz, que que eu te falei? Para você não passar do meio". "Professor, mas eu fiz o gol". E ele respondeu: "Não interessa, pedi para você não passar" (risos).
- Isso não é mentira, não (risos). Lateral-esquerdo não dá, meu irmão. E eu segui no Vasco como lateral, só que eu nunca fui lateral. Querendo ou não, eu sou grato ao Vasco porque ali nasceu o Wellington Monteiro. Por isso sou muito grato mesmo.
TREINADOR DE SUB-20
Depois de rodar por vários clubes, Wellington pendurou as chuteiras aos 40 anos com a camisa da Lajeadense, do Rio Grande do Sul, em 2019. Hoje, aos 42, é treinador do time sub-20 Real Futebol Clube Heips, de Guaratiba, Zona Oeste do Rio de Janeiro.
- Parei de jogar faz um ano e pouco, e a minha meta sempre foi ser treinador. Fui no Sul, fiz o curso pelo sindicato de treinadores, tirei minha carteira lá. Não fiz da CBF por enquanto. Tive algumas propostas, mas com a pandemia deu tudo para trás. Aí pintou a oportunidade de eu treinar o sub-20 do Real, que não é profissional. Só tem base. Fazer curso é muito bom, mas tem que colocar em prática, porque foram anos jogando futebol, e a gente sabe que o futebol se atualizou muito. A gente tenta implantar algumas coisas para os guris de hoje. O que o futebol quer hoje? Que os atletas não percam a raiz deles. Não podemos tirar o futebol moleque deles, mas com responsabilidade de adulto.
Wellington Monteiro, já como volante, marca Ronaldinho na final do Mundial de 2006, entre Inter e Barcelona - Toru Yamanaka/AFP
As dificuldades financeiras ficaram no passado. Wellington não ficou rico com o futebol, mas realizou o sonho que tinha da época das peladas na rua. Foi campeão do mundo pelo Internacional, que considera o topo de sua carreira.
- A gente não ganhou muito dinheiro para ser sincero. Mas o dinheiro que a gente ganhou soube administrar. Não muito, mas soube. Tivemos alguns erros, normais. Tentamos fazer algumas coisa e deu certo. Dá para ter uma vida de qualidade normal, isso é fato. Uma coisa que sempre falo é que todo mundo tem que passar dificuldade. A vida é assim, a gente perde para ganhar e desce para subir. Tem coisas que valeram a pena passar. Quem geme e quem sofre sabe o que é isso. Depois que a gente passou por outros times grandes querendo ou não tive um status a mais. E eu sou muito grato ao Vasco por tudo.
GOL MAIS IMPORTANTE
- Com certeza foi o gol mais importante da carreira. Se tratava de um título e em cima de um rival. Lembro que no vestiário antes, a gente conversando e tal, e muitos falavam de gol do Marcelinho, gol do Pet, gol do Valdir, mas nunca de gol do Monteiro. Isso aí ninguém pensava.