A coragem de seguir em frente, apesar dos obstáculos, fez com que, em 2018, o Brasil conte com uma jogadora que é seis vezes melhor do mundo. Pois foi com essa característica aflorada que, lá no começo, em Dois Riachos, Marta driblou o preconceito de um treinador que não a queria atuando com meninos em uma competição. Um capítulo se encerrou ali, mas outro começou logo ali adiante e com uma trilha que chegou até o último dia 24 de setembro, em Londres, no palco de gala da Fifa. Em entrevista a Casagrande, no quadro Casão F.C., a camisa 10 comentou que a proibição da época a fez questionar da razão do seu talento se não poderia exercê-lo. Decidiu seguir em frente e disse que aquilo foi determinante para empurrá-la adiante.
- Eu comecei a entender que poderia dar certo quando eu jogava no meio dos meninos e conseguia me sobressair. Eu falei "oh, eu sei fazer bem esse negócio aí". Eu lembro que eu estava assistindo à TV e vi um jogo de futebol feminino, não me recordo, talvez fosse até a equipe do Corinthians que existia anos atrás, São Paulo também tinha, e aí eu vi que existia futebol feminino nas grandes cidades. Comecei a colocar aquilo na minha cabeça de que eu iria chegar lá, eu iria conseguir chegar lá. Aí eu falei pra minha mãe: "Ó, um dia você vai assistir eu jogar, vai me ver na TV". E eu coloquei aquilo na minha cabeça e fui trabalhando pra que isso acontecesse. Então aconteceu um episódio muito interessante. Quando eu estava já no meu segundo ano nessa competição de futsal que eu jogava com os meninos, chegou um treinador de outra equipe e falou "se vocês deixarem a menina jogar, eu vou tirar o meu time, porque é um campeonato masculino e eu não acho correto aceitar uma menina". Aquilo me doeu tanto, que eu falei: "poxa, eu estou fazendo algo errado? Então por que que Deus me deu esse talento?". Eu tive que parar, né, porque a organização do evento chegou e falou "ó, infelizmente não vai poder". Eu fiquei tão chateada, mas aquilo me empurrou para frente, não me fez regressar – declarou Marta.
Logo em seguida, aos 14 anos, seguiu ao desconhecido. Rumou para o Rio de Janeiro com o desejo de fazer teste em um clube de futebol. Recebeu o apoio dos amigos, dinheiro para o lanche e percorreu a estrada durante três dias. Aprovada no Vasco, decretou: "Daqui eu não saio mais, pra lá eu não volto".
- Aí eu conheci o coordenador, que era o Marcos. Ele era do Rio de Janeiro, mas morava aqui em Alagoas há bastante tempo. Resolveu voltar para o Rio e me fez a proposta de ir pra fazer um teste lá. Na época tinha o Fluminense, tinha o Vasco feminino. Juntamente com o meu primo Roberto e Luis Euclides, um amigo meu, a gente organizou essa viagem e eu falei "caraca, eu vou para o Rio". Eu falei "eu vou, se não der certo eu volto". Os amigos chegaram, alguns amigos ajudaram financeiramente, "olha toma isso aqui para você fazer um lanche no caminho". E a minha mãe não estava acreditando: "Ela não vai não". Ela só foi acreditar quando eu entrei no ônibus. Foram três dias para chegar no Rio e fazer o teste no Vasco. Aí começou tudo. Eu falei: "Daqui eu não saio mais, pra lá eu não volto" - disse ela.
Da viagem de três dias, Marta teve seu esforço recompensado. Começou atuando pela equipe sub-19 do Vasco, mas logo foi promovida ao time principal. De lá, um pulo para a chegada na Seleção e a disputa de torneios importantes como Sul-Americano e Copa do Mundo. Ao seu lado, lendas da modalidade como Sissi, Pretinha e Roseli. Uma nova vida se vislumbrava.
- De ir para o Rio eu não senti medo algum. Eu falei: "eu vou, eu quero ir, eu quero chegar lá, eu quero mostrar o meu trabalho, mostrar que eu sei fazer isso bem". E ter a oportunidade de jogar numa equipe estruturada, com outras meninas, nÍvel alto. Ter uma oportunidade também de estar mais próxima da seleção. Falei: "essa é minha chance, eu não vou desistir, tenho que seguir em frente", e eu fui. Lembro que eu nem dormia dentro do ônibus porque eu queria ver todas as cidades, onde que a gente estava passando, eu lia as coisas. Lógico, com aquela ansiedade de chegar no Rio de Janeiro, porque só via na televisão. Quando cheguei no Rio, fiquei na janela, lembro que era à noite, passando aquela ponte Rio-Niterói e toda deslumbrada com aquilo tão gigante na minha frente. Aí começou realmente a ficar mais sério porque na época o Vasco tinha uma equipe muito boa e tinha duas equipes. Uma era sub-19 e a principal. Na principal já jogavam Sissi, Pretinha, Roseli, as craques da seleção brasileira. Eu comecei treinando com o sub-19. Em seguida já fui para o time adulto, foi uma coisa muito rápida. Quando eu olhei assim já estava jogando pela seleção com 15 anos e disputando Sul-Americano, Copa do Mundo - disse.
Mesmo recebendo pela sexta vez a taça de melhor do mundo, Marta se emocionou como se fosse a primeira vez. Lembrou do começo, do preconceito enfrentado, do fato do futebol feminino ainda ser visto com menos valor por algumas pessoas. Foi nesse filme todo que ela pensou quando subiu ao palco. Ela ressalta: as conquistas são de todas porque, segundo ela, a modalidade é um trabalho coletivo em busca da visibilidade.
- Eu digo que o futebol feminino é um trabalho coletivo em todos os sentidos porque a gente tem uma dificuldade muito grande para divulgar o produto futebol feminino, então sempre que vem uma conquista eu faço questão de dividir, dividir com todo mundo, dividir com as minhas adversárias, com as minhas companheiras, porque é motivo de muita alegria. Acho que é um trabalho que a gente se propôs a fazer com tanta garra, com tanta determinação e tem que ser dividido por todas, porque não é fácil jogar futebol pra uma mulher.