Pernas finas, bigodinho ralo e camisa sobrando no corpo franzino. A imagem do endiabrado Dener dentro de campo remete a um tempo que não volta mais no futebol brasileiro. Irreverência e molecagem que se misturam com talento e dribles eternos. Em mais de 30 entrevistas sobre o craque morto há 20 anos, o nome de Neymar apareceu 38 vezes. A referência era clara: para quem pouco viu ou não lembra, o Reizinho do Canindé, com seu futebol agudo e irresistível, era uma pedra preciosa que despontava como um dos maiores craques do futebol brasileiro - em trajetória que lembra o início do astro do Barcelona e da Seleção.
Dener morreu em acidente de carro na Lagoa, bairro da Zona Sul do Rio, no dia 19 de abril de 1994. A nova geração que cultua Neymar talvez conheça pouco do craque de Portuguesa, Grêmio, Vasco e com passagem pela seleção brasileira, morto de forma precoce, 17 dias depois de completar 23 anos.
O GloboEsporte.com traz um especial de quatro reportagens para relembrar Dener, além de um webdoc sobre vida e morte do craque. Depoimentos de amigos, família, ex-companheiros e técnicos. Casos dentro e fora das quatro linhas. Dribles e polêmicas. A história interrompida ainda nos seus primeiros capítulos.
DRIBLE MAIS BONITO DO QUE GOL
Os tempos eram outros. Dener só estreou nos profissionais com 18 anos, numa época em que os jogadores não tinham tanta liberdade de transferências. Depois, entre jogadas geniais e os primeiros casos de indisciplina na carreira, o craque ia e voltava para os aspirantes da Portuguesa - para jogar o torneio secundário e paralelo ao Campeonato Paulista - até confirmar o talento na Seleção e nas passagens relâmpago por Grêmio e Vasco.
Talvez a melhor definição do repertório de dribles de Dener seja do ex-companheiro Sinval. Para ele, o amigo não driblava, mas simplesmente fazia o que era possível com a bola ou sem ela para desviar dos jogadores adversários.
- Dener driblava para frente, com velocidade. Houve uma época em que cismaram em comparar Robinho a ele. De jeito nenhum. Era mais parecido com Neymar. Mas acho que ele fazia menos firula, era mais objetivo, mais participativo - lembra Sinval.
As posições em campo são diferentes. Neymar sempre foi um atacante que caía pelos lados do campo, embora também seja finalizador e centroavante. Dener era meia-atacante. Pegava a bola muitas vezes na linha central e ia se livrando dos adversários, dava na maioria das vezes o último ou penúltimo passe para gol.
“Às vezes um drible bonito é mais bonito que um gol”. A frase ficou famosa em entrevista ao Globo Esporte na sua passagem pelo Vasco. Dener se agarrava às redes de São Januário e contava do prazer que tinha pelo drible. No vestiário e até durante os jogos, dava gargalhadas lembrando que deixou o marcador no chão, que deu uma caneta e desconcertou o outro jogador.
FENÔMENO NO SUL
No seu início na Portuguesa, depois que superou a desconfiança que pairava sobre a maturidade do seu futebol, virou o Reizinho do Canindé. O técnico Écio Pasca montou um esquema que livrava Dener de qualquer responsabilidade defensiva. O “losango flutuante” virou manchete dos jornais "Folha de S. Paulo" e "Estado de S. Paulo", e a Lusa ganhou todos os nove jogos, com direito a goleadas de 5 a 1 e 8 a 2, na Copa São Paulo de Futebol Júnior de 1991. Na final, vitória por 4 a 0 sobre o Grêmio dos garotos Danrlei e Emerson.
Na competição, Dener fez nove gols - um a menos que o artilheiro daquela competição, Sinval.
Mal sabia o craque da Portuguesa que aquela exibição contra os gaúchos seria o passaporte para sua estadia no Rio Grande do Sul. Zelio Hocsman, ex-assessor do presidente Fábio Koff, conta a história com ares de folclore. Ninguém no Olímpico esquecia aquele "pretinho" que, conforme palavras de Zelinho, “destruiu” com o Grêmio na final da Copinha. O contato veio depois de uma pelada de fim de ano do Trianon, em Torres, litoral gaúcho. Dener recebeu o convite de Zelinho, questionou se era sério e foi logo levado a um orelhão para falar com Luis Carlos Silveira Martins, o Cacalo, então vice de futebol.
No Sul, foram poucos meses e mais alguns obstáculos superados. Diziam que Dener não se adaptaria ao frio, à lama e ao estilo de jogo dos gaúchos.
- Foi um fenômeno no Rio Grande do Sul. Todo mundo desconfiava, mas se adaptou muito bem. Nos meus quatro anos como vice de futebol, se não foi o melhor, foi um dos três melhores que vi - lembra Cacalo.
O dirigente conta um pouco dos pequenos problemas familiares que Dener levava para o clube para justificar alguns deslizes.
- Era uma flor de sem vergonha. Matou a avó dele umas três vezes - diverte-se o ex-dirigente gremista.
A PRIMEIRA CONVOCAÇÃO
Dener chegou à seleção brasileira muito pela impressão que causou em seu então técnico na Portuguesa, Otacílio Gonçalves, que, segundo seus companheiros da época, foi quem mais deu confiança e oportunidades ao craque.
Sinval se recorda do ex-treinador da Portuguesa e que virou auxiliar de Falcão em 1991 dizer a Dener: “Se você jogar mal 10 jogos, você vai jogar o 11º. Não quero saber. Não vou te tirar”.
Falcão o convocou pela primeira vez para um amistoso contra a Argentina, em Buenos Aires, no dia 27 de março. Na foto do jornal "O Globo", uma semana antes do confronto, era o amigo inseparável Tico quem aparecia erroneamente como um dos destaques da convocação do ex-craque Paulo Roberto Falcão. No empate por 3 a 3 com os argentinos no estádio do Vélez Sarzfield, Dener substituiu Luis Henrique, que entrara no lugar de Cafu. O baixinho da Portuguesa fez a jogada do terceiro gol, mesmo com poucos minutos em campo.
- Falcão havia perguntado para mim o que eu achava. Disse para ele: “Pode levar, sem medo” - lembra Otacílio Gonçalves.
Falcão recorda o motivo da convocação. E exalta Dener:
- Era uma época de descobrir novos talentos, porque a safra não era boa. Via muita qualidade nele. Tinha potencial para jogar, talvez não em 94, mas em 98 e com potencial para 2002.
INDISCIPLINA E PAPO COM GIL
Os jornais da época, porém, relataram uma indisciplina do garoto Dener. Ele teria saído para a noite com alguns atletas mais experientes, como Neto, do Corinthians, no segundo e último jogo dele pela seleção de Falcão, em Londrina. O ex-técnico da Seleção diz não se lembrar do caso. Com um futebol encantador, Dener fazia admiradores até em outros campos da arte.
Em fevereiro, no carnaval carioca, ele se encontrou com Gilberto Gil num camarote de cervejaria no Sambódromo. O diálogo foi animado, e Dener e o cantor trocaram gentilezas.
- Gil, eu sou seu fã.
- Não, senhor, eu é que sou seu fã. Acho você o máximo. Sou daqueles que brigam com motoristas de táxi quando eles dizem que você não pode ir para a Seleção porque não tem responsabilidade. Eu sempre te defendo. Essa história é bobagem. A Seleção não pode ter somente jogadores certinhos - respondeu o músico, para uma reação estupefata de Dener.
Mas Carlos Alberto Parreira, que substituiu Falcão em 1992, e elogiava Dener, principalmente pelo seu início fulminante no Vasco, muito dificilmente o levaria naquela Copa dos EUA. Mesmo impressionando e roubando a cena de Maradona no seu retorno aos gramados na Argentina. Pelo Newell´s Old Boys, em dois amistosos contra o Vasco, Don Diego parou e só faltou aplaudir os dribles de corpo e a agilidade de Dener, que numa jogada passou por cinco jogadores, mas parou nas mãos do goleiro Norberto Scoponi.
- Dener me disse que depois do jogo o Maradona foi falar com ele. “Fala para aquele pretinho esperar que quero cumprimentá-lo no final” - conta Edinho, um dos melhores amigos do ex-jogador.
O filho de Pelé completa:
- Ele fez questão de apertar a mão dele, parabenizá-lo. E o Maradona, como o mundo inteiro sabe, tem uma personalidade muito forte, não ia dar moral para qualquer um, ainda mais sendo brasileiro. Mas ele ficou admirado com o futebol único que o Dener tinha.
PEPE: 'ACHAVA QUE ELE IA SER O SUPRASSUMO'
Pelé, pai de Edinho, volta e meia também celebrava a arte de Dener. No gol histórico de 16 de novembro de 1991 contra a Inter de Limeira, no Canindé, o Rei comentou que era “a redescoberta da arte no futebol, que assinaria embaixo” no gol do jogador da Lusa.
Um ex-companheiro do lendário time do Santos dos anos 1960 - e também de seleção brasileira -, Pepe treinou Dener na Portuguesa no início dos anos 1990. Em sua visão, o acidente de 1994 interrompeu uma carreira que se anunciava como das mais espetaculares.
- Achava que ele ia ser o suprassumo. Sempre deixando o Pelé de lado, porque o Pelé era um ET, achava que Dener ia ser algo logo abaixo do Pelé. Era um superdotado, como o Neymar, que conheci no dente de leite. O Dener era desse nível. Mais rápido ainda que o Neymar - afirma.