“O elemento de cor que entre num grande clube nunca é bem recebido. O único clube grande que recebe com simpatia esses elementos é o Vasco da Gama”.
Leônidas da Silva (1931)[1]
No dia 1 de setembro foi publicado no Ludopédio, o artigo: “Pretos, não te enganes, no esporte nenhum branco lutou por ti”, assinado por Ricardo Pinto dos Santos. O artigo em si traz como pano de fundo a proposta de “descolonizar a história da luta contra o racismo no esporte” e, sobretudo, como objetivo central, tenta questionar o lugar de protagonismo em âmbito esportivo do Club de Regatas Vasco da Gama nesse tema grandioso.
Desde já esclarecemos que o propósito das linhas a seguir não é contrapor a busca por respostas ao racismo estrutural historicamente entranhado na sociedade brasileira e, tampouco, diminuir o trabalho de Ricardo Pinto dos Santos, autor do livro: “História, Conceitos e Futebol racismo e modernidade no futebol fora do eixo (1889 – 1912)” e que, mesmo sendo torcedor do Flamengo, foi por alguns anos funcionário remunerado do Centro de Memória do Vasco.
Todavia, o presente artigo de Ricardo Pinto dos Santos é em forma e conteúdo uma peça de desconstrução seletiva do Vasco frente a uma das bandeiras mais caras e amadas da história do clube: a luta contra o racismo.
O primeiro ponto que precisa ser estabelecido é o critério do que se discute, já que o Vasco não foi fundado com a finalidade de um partido político, detentor de um programa universal para o país ou de um movimento social defensor de bandeiras para frações da sociedade. Aliás, no Brasil dos anos 1910 e 1920, as organizações políticas fora da superestrutura do Estado eram absolutamente incipientes e resistiam em pequenos círculos. Assim sendo, é importante registrar que o Vasco foi fundado com a finalidade de ser um clube desportivo dedicado a prática do remo com a ideia da comunhão entre brasileiros e imigrantes portugueses, independentemente de sua classe social. Portanto, sua grandeza na história e seus limites devem ser comparados e julgados por sua natureza esportiva.
Segundo, nota-se que o autor não traçou nenhum paralelo digno de nota, no tempo e no espaço, da presença negra e de ações comparativas (mesmo as pontuais) entre o Vasco e os principais clubes desportivos da época. De tal maneira, Ricardo Pinto dos Santos omite o fato que o Vasco, em 1904, dezesseis anos após a abolição da escravatura, elegeu Cândido José de Araújo, o primeiro presidente negro dos grandes clubes do país. Que antes de se tornar presidente do clube passou por postos de comando do Vasco, como a tesouraria e a vice-presidência. E em 1905 foi reeleito para presidente do clube.
Há 115 anos, o #VascoDaGama elegia Candido José de Araujo, o 1.º presidente negro de um clube esportivo no RJ.
— Vasco da Gama (@VascodaGama) August 7, 2019
Em 1904, apenas 16 anos depois da abolição da escravidão, em uma época de racismo extremo na sociedade e o esporte, Candinho foi eleito presidente e reeleito em 1905. pic.twitter.com/EJGdK7dyEk
Sob esse prisma, destacamos as palavras de José da Silva Rocha, o mais afamado pesquisador da história do clube, no clássico “Club de Regatas Vasco da Gama – Histórico (1898-1923)”[2]:
O C. R. Vasco da Gama nesse quadro de organizações desportivas originárias da vontade de moços não nascidos no Brasil era realmente singular. Nele viviam de mãos dadas e também sem olhar nacionalidades brasileiros e portugueses sendo de realçar que um dos primeiros presidentes, dos mais dedicados e brilhantes administrativos, fora o mulato Cândido José de Araujo.
Agrega-se ainda que na primeira participação do Vasco na segunda divisão do campeonato carioca, em 1917, o time de futebol vascaíno já contava com futebolistas negros. Nos anos 30, o Vasco incorpora a prática da capoeira em suas atividades. E é sempre bom lembrar do Bolão, um dos heróis negros da conquista de 1923, que se torna dirigente e em seguida Benemérito do clube. No âmbito da torcida, indiscutivelmente a maior e mais popular do Rio de Janeiro, o Vasco contou com a liderança de Affonso Silva (o Polar) e adesão voluntária de ícones como Pixinguinha, Clementina de Jesus, Sinhô, Ismael Silva, Jamelão, Zé Keti, entre outras representações negras da cultura e da música popular brasileira, contemporâneas ao título de 1923.
Terceiro, sobre a RESPOSTA HISTÓRICA ou “a carta”, como se refere Ricardo Pinto dos Santos. Mesmo o Vasco tendo o enquadramento de uma associação social-desportiva, sua característica e seus feitos foram mais republicanos do que pálida e débil Primeira República brasileira, com Estado, Regime e Governos, absolutamente elitista, racista e xenófoba. Não é por nada que não há uma RESPOSTA HISTÓRICA em cada esquina. A rigor, a RESPOSTA HISTÓRICA é a negação contundente de uma imposição inquisitória naturalizada na República Velha e que foi operada por sujeitos de carne e osso que representavam os pavilhões de Fluminense, Flamengo, Botafogo e América. Por isso, é relevante enaltecer sem vacilar A Carta de 1924 – RESPOSTA HISTÓRICA – e o sujeito responsável pela mesma, José Augusto Prestes, um reconhecido militante da causa republicana em Portugal e que esteve à frente de seu tempo, construiu a primeira fábrica de gelo e o primeiro automóvel do Brasil, no final da vida vendeu sua fábrica para os próprios trabalhadores[3].
Quarto, sobre Mario Filho. Muito foi dito na obra “Vasco: o clube do povo – uma polêmica com o flamenguismo (1923-1958)”. Contudo, é importante registrar que Mario Filho tem um grande serviço prestado ao desporto nacional. Não restam dúvidas que ele foi o maior cronista esportivo brasileiro de todos os tempos e acrescenta-se que Mario Filho foi determinante na abordagem do racismo no futebol brasileiro. Mas, essa qualidade não anula que parte de sua produção teve cunho parcial. Ora, se é parcial, não se pode considerar como universal. Acontece que os escritos de Mario Filho se transformaram na universalização da verdade na literatura do futebol brasileiro. O que evidentemente não corresponde com determinados episódios. Por isso, a obra de Mario Filho deve ser analisada de modo crítico e não acrítico.
Quinto, é de se estranhar o caminho escolhido para traçar a “polêmica” e as omissões de Ricardo Pinto dos Santos, uma vez que o mesmo foi funcionário do Centro de Memória do Vasco. Mas, pelo menos, nessa oportunidade, Ricardo Pinto dos Santos corrigiu um grave erro que cometeu no PODCASTS GE VASCO #24, onde declarou:
“Em 12 de outubro de 1933, o diretor de esportes terrestres do Vasco notifica dois jogadores do Vasco, negros, para que eles não ocupem o mesmo espaço que o sócio. Então veja, a dimensão do racismo tem que ser compreendida com maior profundidade. Que não é só eu cometer um fato aqui que ao longo da minha história vai tornar o grande símbolo da luta. É mais ou menos a desculpa que o racista de hoje quando falar: ‘eu tenho amigo negro, tenho um cabeleireiro que é negro’. Ele usa para manifestar a posição dele anti-racista”.
Nitidamente, o comentário de Ricardo Pinto dos Santos foi no mínimo infeliz. Até porque, pelo que consta da Ata referida, o conteúdo não é o mesmo que foi apresentado por Ricardo no PODCASTS.
O que diz das Actas da Sessão Directoria do Vasco da Gama de 12 de outubro de 1933: “Rubens Espozel[4] pede para que se officie aos profissionais Fausto dos Santos e Moacyr de Queiros [Russinho] afim de não ingressarem em locais reservados dos sócios”[5].
Isto é:
1. Dois jogadores são advertidos. E não são quaisquer jogadores. São nada mais e nada menos que Fausto e Russinho, dois dos maiores craques do futebol brasileiro dos anos 1930. Jogadores que figuravam na seleção brasileira da época;
2. Fausto era negro. Mas, Russinho era branco. Portanto, fica difícil de sustentar que a punição em conjunto tenha como razão um ato racista. Ainda mais diante do fato que o ex-jogador negro Claudionor Correa (Bolão) durante os anos trinta ocupou cargos de direção no departamento de futebol do Vasco.
Assim sendo, fica nítido que Ricardo Pinto dos Santos não teve galhardia e o devido cuidado com a universalidade dos fatos na referida entrevista do GE Vasco do portal globo.com e no recente artigo no Ludopédio. Logo, não podemos aceitar sua narrativa seletiva no que compete ao papel do Vasco na História.
Finalmente, o conteúdo expresso acima demonstra que o Vasco precisa falar por si e caso, por alguma razão, não for possível, suas representações de vanguarda, em especial os pesquisadores do clube (atentos e a postos), devem responder sistematicamente a toda e qualquer ação e pronunciamento que tente diminuir a relevância histórica da instituição Club de Regatas Vasco da Gama.
Notas
[1] Hamilton, Aidan. Domingos da Guia: o Divino Mestre. RJ. Gryphus, 2005.p. 82.
[2] ROCHA, José da Silva. Club de Regatas Vasco da Gama – Histórico: 1898-1923. Editora-Rio. 1975. p. 196.
[3] FONTES, Leandro Tavares. Vasco: o clube do povo – uma polêmica com o flamenguismo (1923-1958). Livros de Futebol. 2020. p. 55.
[4] Primeiro Diretor de Esportes Terrestres do Vasco.
[5] SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. A Revolução Vascaína. 2010. p. 425.
Leandro Fontes
Geógrafo, pesquisador e autor do livro Vasco: o clube do povo – uma polêmica com o flamenguismo (1923-1958).
Jorge Medeiros
Historiador, pesquisador e autor da tese As Torcidas Uniformizadas (Organizadas) de Futebol no Rio de Janeiro nos anos 1940.