\"Enquanto houver um coração infantil, o Vasco será imortal\". Essa frase, cunhada por Cyro Aranha, estava impregnada há anos na minha alma vascaína. Falar do Vasco era lembrar do hino, da bandeira, da cruz de malta. E lembrar, também, de seus meninos... dos laboriosos \"Meninos da Colina\", vindos de todos os cantos e lugares, atraídos pela trajetória de glórias e conquistas do Almirante.
Essa frase de ouro da rica fraseologia vascaína perdeu um pouco de sua cor na tarde de ontem. A cruz de malta perdeu seu carmesim, a faixa transversa perdeu seu traço reto e pareceu ondular.
Ficamos mais pobres e feridos, no orgulho e no sentimento, com a morte desse menino Wendel.
Se é dura - tão dura - a morte de um jovem tão cheio de sonhos e desejos em seus principescos 14 anos, mais dura ainda é a realidade de se saber que o clube que sempre ostentou em sua fraseologia o orgulho de reconhecer no coração de seus meninos a imortalidade, agiu de forma tão irresponsável e desumana em uma situação como essa.
Afastemos, nesta tragédia, o viés político, a crítica sanguinária, a perseguição que alguns setores nada humanizados e muito tênues de interesse tentarão demonstrar nesta hora. Não precisamos de políticos à caça chula de voto, nem de maus repórteres que esperam a desgraça para se travestirem de paladinos das causas perdidas em seus microfones ensandecidos de radiodifusão. O que precisamos, nesta hora, é de uma ampla reflexão social sobre o que estamos traçando para nossos meninos-jogadores na dura realidade dos clubes-empresa de futebol S.A.
Nós, os consumidores dessa arte que é a bola, é que permitimos hiperinflacionar folhas salariais astronômicas e condições de luxo e requinte exagerado para uns, a quem elegemos \"ídolos\", enquanto outros mal podem sentar à mesa da concentração para terem um prato de comida que lhes sacie a fome.
Nós, os afoitos, os afobados, os apressados que com tanta velocidade sabemos cobrar notícias de contratações e outras que nos interessem, permitimos que 12 horas se passassem até que um clube do tamanho do Vasco e com a voz do Vasco pudesse falar (e falar muito mal) sobre a morte de um menino que saiu destituído de vida de seus gramados!
Nós, consumidores insaciáveis de astros fulgurantes dos gramados, é que permitimos que os clubes ofereçam concentração de primeiro mundo, instalações de luxo propagadas com garboso orgulho aos quatro ventos pelas assessorias de imprensa (e maquiagem) dos clubes, enquanto nossos meninos mal alimentados passam mal nos treinos e sequer têm um medico que lhes possa oferecer atendimento mínimo para um caso grave.
Nós, envaidecidos torcedores e analistas de ofício, ávidos por novos jogos para expressarmos nossa raquítica inteligência afetada com opiniões certeiras e verdades absolutas, é que permitimos que um atleta de \"primeiro escalão\" seja abalroado de benesses e garantias, enquanto nossos meninos sonhadores encontram o socorro no carro do amigo que os conduz à desgraceira que é a saúde pública vergonhosa e fétida dos dois governantes vascaínos - prefeito e governador -, ambos relapsos e omissos da falta de estrutura de seus desmandos políticos.
Nós, mais interessados na paixão pelo clube que no amor pelas vidas, desprezamos o ser humano quando ele não é \"Reizinho\", nem \"Maestro\", nem \"Dinamite\", nem \"Mito\", nem \"Filho do Vento\", nem \"Animal\", nem \"Baixinho\", nem qualquer outra coisa que nos fale mais do que seu coração batendo no peito, interessados que tantas vezes estamos tão somente no que eles têm para dar, e não exatamente naquilo que eles são.
Nós, torcedores cegos, é que somos culpados por essa exploração indevida da mídia em horários desastrosos de jogos, por essa raça nefasta de repórteres-vampiros que sugam o sangue dos clubes e vivem de apologia a uma ética que eles subvertem debaixo dos panos sob acenos de interesses financeiros.
Nós, apologistas das contratações milionárias, do hiperinflacionismo, do mercado que oferece milhões a meninos peladeiros e negocia migalhas a professores, policiais, bombeiros e outros profissionais fundamentais para quem quer constituir uma nação, temos participação nesse erro social do futebol.
E é por isso, tão somente por isso, por essa nossa concessão para que a máquina continue tragando tudo a seu redor, com fúria e esganado apetite, que permitimos esse abismo entre jogadores milionários e o pobre menino Wendel, que teve seu sonho distante sepultado com seu corpo, que teve sua vocação arrancada de dentro dos gramados, que nem sequer pode chegar vivo à idade onde decidiriam seu destino no campo... a saber: se ele seria entregue às mãos de um vil empresário facínora desses que assolam o futebol ou se seria negociado a peso de chispe, como têm sido negociados os outros meninos sonhadores do nosso Vasco.
E é por essa vergonha, e por não sabermos separar o Brasil \"de fora do campo\" do Brasil \"que entra em campo\", por sermos alardeadores de boa fama a ídolos fajutos de moral hipócrita - que ostentam barrigas, más companhias, processos, bebedeiras, armas, assassinatos, estupros e, ainda assim, são louvados pela mídia e pelo povo como \"heróis\" - que temos nossa cota de culpa nesse caso do Wendel, que era, lato sensu, não apenas um atleta do Vasco, mas um menino do Brasil!
Minha dor, minha vergonha, minha indignação aqui presentes!
E meu pedido de desculpas! De perdão!
Erramos! Falhamos todos! Ou alguém acredita que foi um erro de um clube, de um dirigente, isoladamente?
Juramos que propagaríamos aquela frase: \"Enquanto houver um coração infantil, o Vasco será imortal\". Mas esquecemos de fazer o fundamental: preservar cada coração infantil, garantindo, assim, esse segredo para tal imortalidade.
Deus te dê agora, Wendel, a possibilidade de realizar, em Sua Glória, sonhos maiores do que estes tão meninos que você sonhou aqui na Terra... você que - agora, menino - tornou-se, enfim, imortal!
Twitter @hrainho
Facebook Hélio Ricardo Rainho