O atacante Raniel vem caindo nas graças dos torcedores do Vasco neste início de temporada. Os três gols em cinco jogos, a promessa de remunerar os companheiros que lhe derem assistências e o apelido de "dinossauro" transformaram o atleta de 25 anos num dos principais destaques da equipe de Zé Ricardo. Os sorrisos de 2022 vêm depois de uma maré de acontecimentos ruins na vida do jogador, que abriu o coração em depoimento ao site "Players' Tribune".
Na entrevista, Raniel contou que foi abandonado pela mãe e criado por uma vizinha no bairro do Arruda, em Recife. Enquanto dava seus primeiros passos no futebol profissional, após superar uma infância de poucos recursos financeiros, diz ter se envolvido com ácool e drogas — fazendo uso e traficando. Aos 17 anos, quando atuava no Santa Cruz, acabaria testando positivo para cocaína num exame antidoping.
— Ver ela (a avó Marinalva) ali chorando na frente da televisão (enquanto via o anúncio da suspensão) acabou comigo. Eu me senti caindo de vez no abismo e que ele não tinha fundo, que eu desceria pra sempre até morrer. Mas o Santa Cruz, que sempre me tratou com respeito, com dignidade, outra vez estendeu a mão e me resgatou. O clube me manteve no elenco mesmo eu não podendo jogar. Eu só treinava. E aguentava calado as ofensas na rua: "Lá vai o drogado!", "Olha aí o jogador viciado, o problemático!".
Raniel diz que "pagou cedo" pelos erros e pôde recomeçar a carreira a partir dali. Do Santinha, rumou ao Cruzeiro, onde ganhou os principais títulos da carreira, incluindo duas Copas do Brasil. Passou também por São Paulo e chegou ao Santos, numa época em que viveria os dois momentos mais complicados de sua vida.
Acidente do filho e recaída
O primeiro deles foi o acidente com o filho, Felipe. Em março de 2020, o pequeno, então com dez meses de vida, se afogou na piscina em um acidente doméstico. Ele teria alta cerca de um mês depois.
— Foram quase 40 minutos dele em parada cardíaca, sem responder, sem vida. Eu conheço bem a dor, de vários tipos e intensidades, por isso posso falar: nenhuma dor que eu tenha sentido até então ou ainda venha a sentir será igual à daquele dia. Nenhuma. Mas aí o Felipe voltou. E a única explicação que eu tenho é que Deus nos deu uma prova de que ele existe — conta o atacante.
Mas o episódio o levaria novamente à bebida.
— Voltei a beber e não foi pouco. Era o auge da pandemia e os jogos estavam suspensos, os estádios fechados. Como é difícil admitir isso. Eu tive uma recaída. Eu me afundei. Bebia, bebia, bebia até cair e bebia mais um pouco deitado. Só parava depois de desmaiar. Eu queria me destruir. Eu via que a qualquer momento algo grave ia acontecer comigo. E eu desejava que acontecesse, porque aquele abismo em que eu caí depois do antidoping no Santa Cruz ficou rasinho perto desse.
Covid-19 e trombose
A última provação de Raniel veio em outubro de 2020. Um mês depois de contrair Covid-19, o jogador lidou com uma possível sequela da doença: uma trombose aguda avançada na perna direita. Precisou ser operado duas vezes. Chegou a ser avisado pelos médicos que poderia ter de encerrar a carreira ou até perder a perna.
— Velho, nessa hora eu cheguei até a questionar Deus… Ele que me perdoe. Pô, Deus, de novo?! Só comigo??? Por quê?! O que o Senhor quer de mim?! Fizeram a cirurgia. Me recuperei e tentei voltar a treinar, mas não dava. A trombose tinha criado uma fibrose enorme na minha perna, encurtado um tendão, e eu mal conseguia colocar o calcanhar no chão [...] De longe, 2020 foi o pior ano da minha vida. Era um baque atrás do outro. Notícia ruim atrás de notícia ruim. Sem poder fazer o que eu amo, que é jogar bola, e bebendo cada vez mais, eu percebi que podia perder não só a minha carreira, mas também meus filhos e a minha família.
Mas a força da recuperação de Felipe o inspirou na sua própria. Raniel diz que a perna direita agora está até mais forte que antes das cirurgias. A boa fase no Vasco tem como símbolo uma das tatuagens que o jogador carrega no corpo, a data estampada abaixo de seu olho esquerdo, 7 de dezembro de 2020. É a data em que Raniel decidiu parar de beber e eternizar em seu rosto, para lembrar de sua resolução. Longe dos vícios, recuperado dos problemas físicos e do baque com o filho — e agora pai de três —, o jogador comemora a chance de brilhar em São Januário com a camisa 9 cruz-maltina.
— Estou pronto para viver o melhor ano da minha vida. Mas, não importa o que aconteça nem quantos gols eu marque na temporada, eu finalmente me sinto em paz [...] Então, com essa tatuagem perto do olho, que a vó Marinalva diz ser a janela da alma, todo mundo pode me ver por inteiro, por dentro e por fora. Os números não mentem: essa é a minha história, cheia de dores, quedas e cicatrizes, mas verdadeira pela primeira vez. Você não precisa sentir pena de mim. Apenas me conhecer. Eu sou Raniel, camisa 9 do Vasco, tenho 25 anos, três filhos e uma esposa incrível. E desde 07-12-20, não boto uma gota de álcool na minha boca. Muito prazer.