Quase trinta anos depois de disputar seu primeiro Flamengo e Vasco, quando marcou um dos gols da vitória vascaína por 4 a 0, em outubro de 1985, Romário não saberia mais para aonde correr caso ainda estivesse em campo no clássico de hoje. Mesmo que sempre tenha feito da direção do gol sua bússola e que seja ídolo das duas torcidas, a sensação de estar perdido na própria casa é compartilhada pelos personagens do documentário “Geraldinos”, de Pedro Asbeg, que será lançado em abril.
Ao acompanhar os últimos dez jogos da antiga geral do Maracanã, em 2005, o diretor foi ao mesmo tempo socorrista e arqueólogo para salvar, na alta definição da memória afetiva, a face mais popular do estádio, que seria soterrada pela sua modernização. Em torno da circunferência do gramado, o primeiro piso era ao mesmo tempo anárquico e solene. Com o corpo abaixo do nível do campo e apenas o pescoço de fora, o sufoco do geraldino, termo criado pelo radialista Washington Rodrigues, era compensado pela possibilidade de participar da festa de cabeça erguida, e de aplaudir de pé os mesmos jogares que havia xingado no lance seguinte
— Minha relação com o geraldino era bem direta. Sempre fazia muito gol, e todo gol que eu fazia ia lá neles. Para mim, o Maracanã era aquilo ali — disse, no documentário, o ex-craque Romário, que celebrava um encontro consigo mesmo quando corria na direção da geral para celebrar seus gols. — Eu sou um geraldino. Ia extravasar do outro lado, com meu pai, na torcida pelo América.
Chamado de coxinha pelos companheiros da seleção de 1982 por conta da grossura de suas pernas, Zico viu o sentido do apelido mudar junto com o poder aquisitivo do público que fica à beira do campo. Na fronteira entre o humor e a segregação que ainda insiste em dividir o país entre ricos e pobres, coxinha hoje é quem pode pagar R$ 165 para ver o jogo de hoje no setor Maracanã Mais que cobriu de cadeiras e mimos o espaço outrora livre para a confraternização geral.
— Era uma delícia fazer gol e ir comemorar ali com os caras — lembrou Zico, que repetiu por 333 vezes o ritual que faz dele não apenas o maior artilheiro do Maracanã como também o jogador que mais se deparou o sorriso escancarado do geraldino. — Várias vezes tive vontade de pular daquele fosse e cair em cima deles.
Com a explosão de vigor e talento do início da carreira, Romário ia até o limite. Depois de marcar seus gols em alta velocidade, saltava as placas de publicidade e precisava ir até a geral para completar a desaceleração. Sem o mesmo vigor físico, o atual senador usa os atalhos da política para continuar provocando manifestações de amor e ódio, como mostra o documentário de 73 minutos.
— Quando comecei no Vasco, a geral era o fervo. Como a torcida do Flamengo era maior, ia para perto deles para irritar mais ainda.
A capacidade de enfrentar o campo majoritário atravessa o depoimento daqueles que tratam a reforma e a concessão do estádio como um atentado ao interesse público e ao espaço da democracia social que o estádio oferecia quando foi erguido em 1950. Para o deputado Marcelo Freixo, “a privatização do Maracanã é uma das coisas mais escandalosas que eu vi na vida pública”. Ao lembrar que os colonizadores espanhóis erguiam suas catedrais sobre os templos incas para materializar a dominação cultural e política, o jornalista Lúcio de Castro, às lágrimas, afirma que os agentes da reforma do Maracanã “fizeram questão desse desaforo. Em cima do nosso templo, construíram o templo deles”.
Em meio aos protestos que marcaram a audiência pública sobre a concessão, o filme mostra quando o então secretário da Casa Civil, Régis Fichtner pede a palavra para determinar o prosseguimento do processo “que obedece as regras democráticas”. Sem a mesma tensão daquele momento, num depoimento gravado num dos camarotes do novo Maracanã, o diretor de marketing do consórcio, Marcelo Frazão, diz que a nova ocupação do estádio não confirmou a expectativa da elitização antes de combater a nostalgia geral ao dizer que “ninguém tem saudade de um lugar que era incômodo, inseguro e quase insalubre”.
A explosão de gol e urina que vinha das arquibancadas repete aos fluxos contraditórios da cidade em que a verticalização não basta para definir o lugar de cada um. Se, até o início do século XX, subir na vida significava morar no alto do morro, para fugir da falta de saneamento das áreas planas e alagadas, hoje a higienização do espaço público desceu ladeira e arquibancada abaixo.
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Valor inalienável na democracia, a liberdade de expressão tinha o preço da camaradagem no antigo Maracanã. Para ter o nome gritado no ouvido do treinador, o ex-atacante rubro-negro, Julio Cesar Urigeler, lembra que alguns companheiros iam até o limite da geral antes do jogo e distribuíam laranjas e sanduíches, retirado do farnel dos jogadores. Hoje, o direito de ser ouvido em campo virou um privilégio para quem pode frequentar o Maracanã mais que os outros.
— Eu sou geraldino, paguei três contos. Está até caro, mas paguei — diz, no filme, o tricolor Adílson Naná.
O grito dos excluídos e de quem brigava por eles logo foi abafado pelas britadeiras. Nas imagens da destruição da geral e de todo o estádio original, uma betoneira no canto da tela é a metáfora do movimento em que dinheiro público se transforma em cimento para voltar como caixa de campanha. Além da discussão política, o filme tem o lirismo que o futebol perdeu. Quando o Maracanã era pobre, o espetáculo era mais rico, a começar pela capacidade que geral tinha de botar os craques divinos e os pobres diabos no mesmo plano. O período de opulência, que coincide com a carência de ídolos e de manifestações genuínas, impôs o exílio de antigos militantes. Antes e depois da reforma, o filme acompanha a rotina do tricolor Edgard Roque e do rubro-negro Bernardo Oliveira para mostrar que o lugar do geraldino agora é na frente da TV.
Assim como uma fronteira pode representar separação transcendência, o antigo fosso da geral apontava para a possibilidade da transcendência.
_ Parecia difícil pular do fosso para o campo mas a emoção faz com que o torcedor voa (sic) _ disse Edgard Roque num momento em que o filme relembra sua invasão de campo para pedir clemência a Zico ainda no primeiro tempo de um Fla-Flu que o tricolor perdia por 3 a 0. — Até hoje o Zico comenta que se não fosse eu o Flamengo daria uma goleada histórica.
CONFLITOS DA SOCIEDADE
Por trás da fantasia e dos personagens folclóricos, a geral reproduzia os conflitos da sociedade ao deixar os mais pobres no alvo dos maus tratos do andar de cima e do descaso das instituições. Numa cena do filme, a policia usava uma corda para arrastar o rebanho de torcedores detidos. Apesar da vida de gado, e da visão de antolhos, ainda havia a grama verde do Maracanã para lhes alimentar o espírito. Para o historiador Luiz Antonio Simas, a geral era uma possibilidade de o torcedor dizer “eu quero estar no estádio, se eu vou ver o jogo ou não, dane-se”.
Embora o antigo estádio seja apresentado como o espelho de um projeto de cidade inclusiva, o espaço reservado à pobreza serve também como um reconhecimento da impossibilidade de se reduzir as distâncias. Por outro lado, a eliminação do setor e de qualquer compromisso social na reconfiguração do estádio acabou de vez com qualquer romantismo.
Por mais que o discurso oficial sustente que a reforma tentou preservar a tradição, a família e as propriedades do estado, os lugares bem marcados pela lei de mercado vão na contramão da mobilidade humana que a geral oferecia. Em nome do mesmo individualismo que leva carros particulares para o engarrafamento coletivo, o torcedor se aperta nas novas cadeiras do Maracanã sem se dar conta que já foi possível acompanhar a progressão time à beira do campo, e correr com ele, literal e lateralmente. Se fosse lançado no clássico de hoje, Romário seria mais um geraldino à procurar pelo seu lugar nos escombros da memória afetiva. Apesar de o rolo compressor ter implodido tudo, é impossível soterrar a força das manifestações que surgem de baixo para cima. Nesta direção, o movimento da câmera de Asbeg salvou a alma do Maracanã ao atentar para o último grito dos geraldinos.