O que fez Dimitri Payet dizer "sim" ao Vasco em agosto de 2023? O time brigava para não cair no Campeonato Brasileiro e sofria grande pressão no primeiro ano com investimento milionário da SAF. Aos 36 anos, perto da aposentadoria e idolatrado no Olympique de Marselha, o camisa 10 viu no Brasil a chance de viver um grande desafio (vídeo).
O primeiro telefonema do Vasco não foi dos mais animadores.
- Não é uma aventura, mas sim um desafio. Talvez eu pudesse ter ido para outro lugar por outros motivos, mas sou apaixonado por futebol e, quando se é apaixonado por futebol, você quer jogar em clubes como esse, com torcedores como esses, em um país como esse. É mais que um desafio quando te ligam e dizem: “Temos nove pontos e queremos nos salvar” - lembrou Payet ao ge, em sua primeira entrevista exclusiva a um veículo de imprensa brasileiro.
- Meu pai me disse: "Por que você está indo para lá? É impossível”. Muitas pessoas me disseram que era impossível. Mas eu vim.
Antes de dizer sim ao Vasco, no entanto, Payet titubeou. Não pela situação caótica que vivia o time, mas por questões pessoais. Casado com Ludivine há mais de 15 anos, o camisa 10 é pai de quatro filhos e priorizou a família na primeira abordagem do clube brasileiro. A esposa, que teve as redes sociais "invadidas" por comentários de vascaínos, possibilitou o sonho do marido.
- É a primeira vez que estou sozinho. Conheci minha esposa há 15 anos. Sempre estivemos juntos com as crianças, onde quer que estivéssemos. Mas agora, por causa da escola dos meus filhos e de seus projetos futebolísticos (um dos filhos está seguindo os passos do pai), não foi possível trazê-los para cá - contou Payet, que completou:
- A primeira decisão foi não. Porque era muito complicado. Com o passar das semanas, quando minha esposa viu que eu realmente queria o Brasil e o futebol, isso foi algo extraordinário para mim. Ela disse: "Vá em frente. Vamos lá, eu cuido de tudo. Eu cuido deles”. Se estou aqui hoje é graças a ela. Sei que ela fez isso por amor e ela sabe que eu amo o futebol. Ela que permitiu tudo que estou vivendo aqui.
Payet mora sozinho no Rio de Janeiro, mas recebe com frequência a visita da família. A esposa e os filhos vêm ao Brasil praticamente a cada três meses.
Brasileirão e Copa do Brasil
Com contrato até junho de 2025, Payet já riscou da lista o primeiro objetivo que tinha no Vasco: ajudar a salvar o time do rebaixamento no ano passado. Pela dificuldade enfrentada no último campeonato, o meia pede calma aos colegas e aos torcedores em 2024. Mas vê chances de ir mais longe em uma das competições que o clube disputa.
- Acho que precisamos manter a cabeça fria e os pés no chão. Durante 15 minutos, estávamos rebaixados. É até loucura dizer que vamos disputar o título, os primeiros lugares... Nós nos reforçamos nesta temporada. A equipe tem um entrosamento, alcançamos juntos o objetivo do ano passado. Hoje, temos uma equipe que está progredindo. Ainda precisamos melhorar. Acho que o objetivo que vamos estabelecer é garantir a nossa manutenção na Série A o mais rápido possível. Se houver jogos restantes e pudermos conseguir algo mais, isso será um bônus.
- Acho que o objetivo deste ano é ir o mais longe pela Copa do Brasil, o que é possível, porque a Copa é diferente. É claro que estamos jogando para ganhar. Quando você começa a competição, você joga para ganhá-la. Mas acho que, no Brasileirão, é preciso manter a cabeça fria. Não podemos almejar o topo com o que aconteceu no ano passado, mesmo que nada seja impossível. Mas acho que é importante não pular nenhuma etapa e não se apressar demais no processo para voltar ao topo com o tempo.
Identificação com Dinamite
Em novembro de 2023, Payet marcou seu gol mais bonito até o momento com a camisa do Vasco. O time venceu o América-MG por 2 a 1 em São Januário, com gol de falta do francês aos 48 minutos do segundo tempo. Na comemoração, apontou para a imagem de Roberto Dinamite estampada na manga da camisa. Uma imagem que marcou a torcida.
- Não foi planejado. Naquele dia, quando cheguei ao estádio, havia muita coisa. Eu não sabia por que, mas sabia que era um dia especial, uma homenagem especial a ele e a outros. Quando fiz o gol, foi um momento muito especial. Durante todo o jogo, eu vi ele nas arquibancadas, no mosaico, na minha camisa e, naquele momento, não sei. Foi a primeira coisa que me veio à mente.
A cobrança, inclusive, foi comparada por torcedores do Vasco ao último gol de falta marcado por Roberto Dinamite, contra o América de Três Rios, no dia 2 de setembro de 1992. A posição e o lugar onde a bola entrou apontaram semelhanças entre os lances. Rodrigo Dinamite, filho do maior ídolo do clube, estava no estádio e se emocionou com as homenagens.
- Eu não sabia, mas é verdade que no mesmo lugar, no mesmo estádio, o último gol dele também foi assim. A probabilidade é louca, a história é magnífica. É um momento muito poderoso, porque você diz isso a si mesmo: “Deram a você a responsabilidade de usar esta camisa, com a imagem do ídolo do clube”. Farei tudo o que puder para honrar sua memória, sua família e tudo o que ele fez pelo Vasco.
- Como disse o filho do Dinamite, tenho a impressão de que foi o pai dele quem finalizou, não eu. Porque houve uma falta três minutos antes, que finalizei contra a barreira ou por cima dela. São coisas que não podem ser explicadas, mas os sentimentos são muito fortes.
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ge: você carrega um terço com você para todo lado no Vasco. Inclusive, está com ele nas mãos enquanto conversa com a gente. Qual é a história dele? Você é muito religioso?
Payet: Foi em uma das minhas primeiras saídas com minha esposa e meus assessores, em um restaurante próximo ao hotel. Houve o batizado de um menino. Seu pai era um grande torcedor do Vasco, e esse terço era para o batizado do seu filho. Mas ele me segurou e me ofereceu, me desejando toda a felicidade e sucesso possíveis com o Vasco. Foi muito forte e muito gentil. Muito carinhoso. E é por isso que eu o guardo desde então.
Sou católico. Sei que no Brasil a base católica é enorme. Sei disso porque venho da Ilha da Reunião. Somos muito religiosos, então estou encontrando um pouco disso aqui também. É uma coisa positiva sobre vir ao Brasil, porque é um pouco como estar na ilha, há muitas semelhanças.
Como é sua rotina fora do Vasco? Você assiste aos campeonatos europeus? Já conheceu alguns lugares no Rio de Janeiro?
Quando tem Liga dos Campeões, Liga Europa, eu assisto aos jogos, ou então estou na academia em casa. Fora isso, passo mais tempo aqui no Vasco do que em casa, foi por isso que vim. Para um projeto, para um clube, é importante poder colocar o clube de volta em seu devido lugar. Especialmente porque minha família não está aqui, não tenho nenhum objetivo hoje além de trabalhar aqui.
Só saí de casa quando minha esposa veio me visitar. Fomos ao Cristo Redentor, ao Pão de Açúcar, às favelas. Fazemos um pouco cada vez que eles vêm, tentamos descobrir um pouco mais, mas ainda não fui à Copacabana.
Você foi à Vila Cruzeiro, local onde Paulinho nasceu e cresceu no Rio. Como foi essa visita?
Foi muito legal. Eu cresci em bairros como esse. Cresci em uma casa onde havia apenas dois cômodos. Quando me chamaram para ir lá, eu disse sim imediatamente. E ver as pessoas, ver a vida delas, sua generosidade.
Pessoas que não têm nada, mas lhe dão tudo. Também são essas pessoas que vêm ao estádio, porque nosso estádio fica bem no meio de uma comunidade, e essa é a alma do nosso estádio também. Acho que é como eu disse ao Paulinho. É graças a essas pessoas, a esses bairros, que nos tornamos as pessoas que somos hoje, e é bom não nos esquecermos disso e irmos retribuir o que eles nos dão todos os dias.
Tenho uma frase que gosto, que diz que “Deus dá suas maiores batalhas a seus soldados mais fortes”. A gente perde o Paulinho e depois o Jair, com duas semanas de diferença, com lesões que duram muito tempo. Mas eu os vejo todos os dias, eles estão trabalhando duro.
É doloroso, não é fácil. Estou fazendo isso há uma semana, vendo meus amigos treinarem, estou ficando louco. Mas eles têm seis meses fora. Estamos aqui com eles, para apoiá-los, mas tenho certeza de que eles voltarão fortes e teremos mais dois reforços quando eles se juntarem a nós.
Quais as principais diferenças entre o futebol europeu e o futebol brasileiro?
O mais óbvio para mim é que o futebol europeu é um pouco mais estruturado. É encantador quando você assiste aos jogos. Acho que as equipes que se destacam hoje são as que conseguem administrar os jogos.
Gerenciar os pontos altos e baixos, quando você precisa manter a bola, quando precisa acelerar. Mas é verdade que aqui, sim, você tem a impressão de que é box to box, que é um pouco o estilo inglês, onde você vê gols, vê espetáculo, vê chances e tem a impressão de que é futebol de rua, mas tem seu charme.
Há entretenimento, há gols, mas acho que, pelo menos para o Vasco, temos de fazer alguma coisa. Gerenciar nosso jogo dentro das partidas, para poder, assim espero, fazer algo com ele. Essa intensidade está lá todos os dias nos treinos e nos jogos. Isso é bom, aumenta a intensidade das partidas, faz com que haja partidas comprometidas.
O que melhorar no futebol brasileiro?
A primeira coisa que me vem à mente é sobre a arbitragem. Mas quando falo da arbitragem, cuidado, não estou apontando o dedo para o árbitro. Nós, os jogadores, somos os primeiros.
Vi a diferença quando saí da França para a Inglaterra. No meu primeiro jogo na Inglaterra, recebi um contato três vezes. Na França é apitado, na Inglaterra três vezes o árbitro não apitou. Na quarta vez, fui falar com ele para avisá-lo. Ele disse: "Mas de onde você é? Você diz que é da França, então bem-vindo à Inglaterra". E assim me acostumei a jogar. Eles não dão as pequenas faltas.
Isso torna as partidas menos caóticas, mais divertidas, mais gols, mais de tudo. E acho que é aí que precisamos progredir. E volto a dizer que não estou mirando nos árbitros. Os jogadores estão envolvidos em pequenas faltas. Às vezes, trazer a maca, coisas desse tipo, interrompe a partida por 2 ou 3 minutos.
Acho que podemos melhorar isso. É mais agradável quando há menos interrupções na partida. Acho que há progresso a ser feito aqui. Jogadores têm que ser as primeiras pessoas preocupadas, cabe a nós ajudar os árbitros a ficarem mais calmos e apitarem menos.
Lá fora, se você fala com o árbitro sem ser o capitão, você recebe amarelo. Aqui, todos falam. Conheci brasileiros e argentinos, eles são maus perdedores, eles reclamam, faz parte de quem eles são. Eu também sou uma pessoa que não gosta de perder. Aqui, tive algumas reações e talvez eu esteja começando a me tornar um jogador daqui.
(Teve sua discussão com o jogador do Nova Iguaçu)... Sim, estava quente. E foi aí que eu disse a mim mesmo: “Talvez você esteja começando a se adaptar demais aqui”. Não gosto de perder e não gosto quando as coisas dão errado. Mas, como eu disse aos meus companheiros de equipe, tenho de ser alguém que dê o exemplo. Manter a cabeça fria porque eu posso ser expulso e isso é grava para o time.
Você conhecia a história do Vasco?
Eu conhecia o Vasco porque é um clube com boa reputação na Europa, com sua camisa e faixa. Mas eu não conhecia sua história. Eu sabia que o Juninho jogou aqui, porque o Juninho estava na França, nós tivemos a oportunidade de jogar um contra o outro. Nenê, nós já jogamos um contra o outro. Eu perguntei se o Vasco podia me dar um livro, algo com a história do clube. Eles me deram.
E depois de lê-lo, eu vi que fiz a escolha certa. Pelo o que foi feito aqui, as batalhas que este clube e seus torcedores travaram, a história de seu estádio, a história do Dinamite e assim por diante, eu vi que era a escolha certa.
Assim que comecei a falar com o Vasco, saíram as notícias, recebi muitas mensagens de ex-jogadores franceses, em especial o Olivier Dacourt, que me parabenizou e me disse que o Vasco é uma referência no mundo por todas essas lutas contra o racismo, contra as diferenças. E ele ficou muito feliz com a contratação de um francês pelo clube.
Você está aprendendo a falar português? O idioma é uma barreira para você ainda?
Acho que há muitas semelhanças com o francês. Se falarmos suavemente hoje, eu posso entender. Meus colegas não me ajudam porque estão mais interessados em tentar aprender francês para falar comigo do que eu em português. Mas eu aprendo algumas palavrinhas todos os dias, porque há o português e o "carioquês". São diferentes.
“Aqui é Vasco, p....!”. Quando cheguei, me ensinaram “aqui é Vasco”. Mas depois, com os cariocas, vi que o “p....”, no final, é muito importante.
O Ramón jogou na França, mas ele fala duas ou três palavras só. Não preciso de tradução. Falamos em espanhol ou inglês. Conheci muitos treinadores espanhóis, por isso entendo espanhol.
O que quer deixar de legado no Vasco?
Eu gostaria de ganhar algo e deixar como marca aqui, trabalho muito duro para isso todos os dias. Já vimos que nem sempre dá certo, vimos isso no Carioca, nem sempre dá certo do jeito que você quer, mesmo que você se esforce muito.
Ainda temos muito, muito, muito, muito, muito trabalho a fazer. Temos um grupo que vive bem, um grupo que é feliz, que passou por momentos difíceis. E sei que, se conseguirmos nos manter conectados com esse trabalho, seremos recompensados. E as recompensas são títulos. Mas para chegar lá você tem que trabalhar todos os dias.