Um dos times mais tradicionais e populares do futebol brasileiro, fundado em 1898, o Vasco da Gama deu um passo importante para tentar sair do atoleiro financeiro em que se encontra há anos. Com dívidas estimadas em R$ 1,4 bilhão, o clube de São Januário teve seu pedido de recuperação judicial aceito pela juíza Caroline Rossy Brandão Fonseca, da 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro, em decisão proferida no fim de fevereiro.
A recuperação judicial é um processo que permite às organizações renegociarem suas dívidas, evitando o encerramento das atividades, demissões ou falta de pagamento aos funcionários. Por meio desse instrumento, as empresas ficam desobrigadas de pagar aos credores por algum tempo, mas têm de apresentar um plano para acertar as contas e seguir em operação. Em linhas gerais, a recuperação judicial é uma tentativa de evitar a falência.
O caso vascaíno é emblemático e único do Brasil porque, além do clube social, a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) foi incluída no processo de recuperação judicial – o que é inédito no país. Recentemente, outros grandes clubes brasileiros, como Cruzeiro e Coritiba, também recorreram a esse expediente, mas sem envolverem suas SAFs.
A Lei da SAF
Sancionada em agosto de 2021, a Lei 14.193/21, que permite aos clubes brasileiros se transformarem em SAFs, vem mudando a cara do esporte mais popular do país. Hoje, a grande maioria dos clubes ainda está estruturada como associações civis – organizações privadas, sem fins lucrativos, formadas a partir da união de seus sócios. Por esse modelo, um presidente é eleito pelos sócios para comandar o clube por um mandato, assim como os componentes dos Conselhos Deliberativo e Fiscal. Na SAF, o proprietário tem absoluto poder de decisão sobre o negócio e não há mandato estipulado. O dono só deixa o comando do clube se vender sua participação.
No Brasil, os clubes organizados como associações civis não podem ser vendidos para investidores e são administrados exclusivamente pela diretoria escolhida pelo quadro de sócios. Com a Lei da SAF, abriu-se uma brecha para a venda total ou parcial da agremiação para empresários, grupos de investidores ou fundos de investimento. Também está autorizada a abertura de capital na Bolsa de Valores.
O modelo da SAF permite ainda a emissão de títulos, com a regulação dos clubes pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Com isso, as sociedades anônimas podem pedir recuperação judicial, negociando suas dívidas, ou levantar recursos por meio de emissão de debêntures ou ações. A legislação também prevê regras para parcelamento de dívidas e permite a separação entre obrigações civis e trabalhistas, sem que elas sejam repassadas para a nova empresa.
Disputa entre Vasco e SAF
No caso específico da recuperação judicial do Vasco, o pedido foi aceito pela Justiça em meio a uma disputa societária entre o clube carioca e sua própria SAF, liderada pela empresa norte-americana de investimentos privados 777 Partners, pelo comando da gestão do futebol.
Em maio do ano passado, a direção do Vasco, capitaneada pelo ex-jogador Pedrinho, atual presidente do clube, obteve uma liminar na Justiça que tirou a 777 do controle do futebol e o passou ao clube associativo – que, na prática, assumiu o comando da Vasco SAF. Segundo os dirigentes cruzmaltinos, a empresa teria descumprido cláusulas do contrato e não honrado a programação de pagamentos – era previsto o aporte de R$ 700 milhões em 3 anos. Na última quarta-feira (12/3), a Justiça do Rio adiou o julgamento de um recurso da SAF contra a decisão que afastou a 777. O caso foi retirado da pauta da 20ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ).
“A peculiaridade desse pedido do Vasco está justamente na junção que ele fez do passivo. Houve um pedido de consolidação substancial, que é a união do ativo e do passivo entre clube social e SAF”, afirma Rafael Santana Coelho, sócio do escritório Paschoini Advogados e especialista em recuperação judicial. “O Vasco entende que não somente seus débitos, mas suas receitas estão intimamente entrelaçados entre clube social e SAF, são indivisíveis. Esse pedido ainda será analisado por ambos os administradores judiciais nomeados, assim como pelo Ministério Público, para que o juízo possa dar uma decisão a respeito desse tema específico.”
“Se o magistrado entender que é possível individualizar os débitos, ele pode determinar que o Vasco e SAF apresentem planos diferentes para cada um dos passivos. Ou seja, haveria um plano de recuperação judicial do clube social e um plano de recuperação judicial da SAF, ainda que eles possam apresentar as mesmas condições”, explica Coelho.
Renato Scardoa, sócio de S.DS Scardoa e Del Sole Advogados, prevê que o imbróglio se transforme em “uma grande salada” jurídica nos próximos meses. “O tempero a mais, na situação do Vasco, é que houve um litígio societário e esse investidor não fez os aportes que eram esperados. O litígio é entre o clube social e a holding que comprou a SAF. A SAF é o objeto da venda, é como se fosse o carro vendido. Quem vendeu foi o clube e social e quem comprou foi o investidor”, exemplifica. “A SAF era, no papel, da 777. O que estava sendo discutido no litígio é se a 777 cumpriu com suas obrigações contratuais. Haverá uma grande salada, como acontece com empresas em crise que têm litígio societário.”
Próximos passos da recuperação judicial
Apesar do conflito entre o Vasco associativo e a SAF do clube, o processo de recuperação judicial seguirá normalmente o seu trâmite, até que haja eventual nova decisão da Justiça em sentido contrário. Com o pedido aceito pelo Judiciário, há um prazo de 6 meses para que as obrigações de pagamento do Vasco sejam suspensas. Em até 60 dias após o início do processo, o Vasco precisa apresentar aos credores um plano para renegociar suas dívidas, buscando o reequilíbrio financeiro.
Depois da apresentação do plano, deve ser convocada uma assembleia na qual os credores decidirão se aprovam ou não a proposta. É possível que eles proponham mudanças no texto ou até mesmo sugiram um novo plano.
Na decisão em que aprovou o pedido de recuperação judicial do Vasco e da SAF, a juíza determinou a suspensão de todas as cobranças em andamento contra o clube e a manutenção de todas as prestações de serviços essenciais ao funcionamento da instituição – como água, energia elétrica, gás, telefonia e internet.
Duas empresas foram nomeadas como administradoras judiciais: a Wald Administração de Falências e Empresas em Recuperação Judicial Ltda. e a K2 Consultoria Econômica. A Wald atuou na recuperação judicial da Samarco e do Grupo Oi. A K2, na recuperação do Grupo Oi e na falência da Varig. O processo ainda contou com o apoio da Alvarez & Marsal, consultoria que já havia sido contratada por Cruzeiro e Coritiba em suas respectivas recuperações judiciais.
“O plano poderá ser precedido por prazos bastante longos para pagamento de dívidas ou pela correção da dívida de uma maneira mais adequada, para que o clube possa fazer frente aos seus compromissos. Muitas vezes também é usado o expediente dos deságios sobre a dívida. O que deve ser feito agora é aguardar o plano de recuperação para se saber qual é o nível de acomodação dessa dívida dentro das perspectivas de caixa do clube”, observa o economista Luís Alberto de Paiva, especialista em reestruturação financeira de empresas, diretor da Corporate Consulting e membro do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças (Ibef).
“Até então, os clubes vinham evitando as recuperações judiciais com receio de que houvesse alguma inibição por parte de investidores, que poderiam ficar receosos de investir em um clube que estivesse em recuperação. Estamos passando por um momento de amadurecimento desse processo”, explica Paiva. “Na verdade, a recuperação judicial não inibe investimento a quem quer que seja. Ao contrário, ela permite que a empresa consiga equilibrar suas finanças e tenha liquidez.”
O advogado Renato Scardoa, por sua vez, observa que o Vasco está longe de ser um caso isolado no futebol brasileiro – e projeta que mais clubes possam recorrer à recuperação judicial daqui por diante. “No caso dos clubes de futebol, o nível de descuido com as finanças tem sido absurdo. E não apenas por falta de dinheiro, mas também por má gestão. Quanto não fatura um grande clube de futebol, como o Vasco, só com receita de televisão ou venda de jogadores?”, questiona.
“A Lei da SAF trouxe pelo menos dois pontos positivos: a viabilidade de o clube poder reestruturar sua dívida por meio da recuperação judicial, que é um instrumento já amplamente reconhecido no mercado, e uma maior profissionalização e melhoria de governança”, defende Scardoa. “Para o clube de futebol, é uma possibilidade de reestruturar e pagar sua dívida. Para os credores, que não estavam recebendo nada, também é algo positivo. É melhor você receber alguma coisa, ainda que em um prazo mais longo e com descontos, do que não receber nada.”
O que diz o Vasco
Procurado pela reportagem do Metrópoles por meio da assessoria de comunicação do clube, o Vasco da Gama não se manifestou. Em nota divulgada no dia em que a Justiça aprovou o pedido de recuperação judicial, o clube, conhecido como Gigante da Colina, afirmou que “a magistrada entendeu que o CRVG [Clube de Regatas Vasco da Gama] detém o controle da Vasco SAF porque é o único acionista no pleno exercício dos direitos societários”. Segundo o Vasco, a juíza “reforçou, expressamente, que seria temerário que a 777, considerando os atos praticados à frente da SAF e a atual situação financeira da empresa norte-americana, reassumisse o controle da Vasco SAF ou influenciasse no processo de recuperação judicial”.
“A magistrada reconheceu os esforços da atual diretoria para reestruturar o clube e atrair novos investimentos antes mesmo do pedido de Recuperação Judicial. Salientou, também, que as medidas jurídicas adotadas em maio de 2024, ao perceber que o aporte financeiro não iria ser concretizado pela empresa norte-americana, tinham como objetivo proteger a Vasco SAF e o CRVG da crise do Grupo 777 no exterior. E que foram efetivas”, diz o Vasco.
A aceitação do pedido pela Justiça é apenas o primeiro passo no processo de recuperação judicial. Se, eventualmente, o plano não for aprovado ou se o clube não conseguir honrar os compromissos assumidos em juízo, os credores podem apresentar à Justiça um pedido de falência do Vasco. Nesse caso, o clube teria seus bens leiloados e suas atividades encerradas, o que jamais aconteceu no Brasil.